
Num discurso feito no ato de juramento de uma turma de cadetes da Polícia Nacional, Ortega desferiu ataques a bispos e padres, acusando-os de “fariseus”, “túmulos caiados” e “somozistas”. Foto © CCC César Perez.
O presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, elevou a fasquia dos seus ataques à Igreja Católica, ao afirmar, numa cerimónia pública, que “nunca teve respeito pelos bispos”, nem acredita neles.
O discurso de Ortega, divulgado nesta terça-feira, 20, foi feito no ato de juramento de uma turma de cadetes da Polícia Nacional, durante o qual desferiu ataques a bispos e padres, acusando-os de “fariseus”, “túmulos caiados” e “somozistas”, por, segundo ele, terem apoiado a ditadura de Anastasio Somoza (1967-1979).
Significativamente, quer o discurso do general que preside à Polícia Nacional do país quer o do próprio presidente estiveram carregados de referências religiosas. Ortega recordou os seus tempos de criança e jovem, educado no catolicismo, familiar até de um arcebispo. Vituperou, porém, a colagem de grande parte da hierarquia da Igreja ao regime somozista, ainda que destacando, como exceção, o nome do padre Gaspar Garcia, espanhol, que deixou o sacerdócio para aderir à Frente Sandinista liderada precisamente por Ortega. Foi sob a égide desse padre que os cadetes fizeram o seu juramento.
Na cerimónia, Ortega enalteceu a ação de vários chefes da Polícia Nacional, destacando o “herói” Ramón Avellán Vidal, subdiretor-Geral dessa Polícia, que teve papel de primeiro plano na repressão das manifestações de protesto desde 2018, sendo acusado da morte de mais de uma centena de pessoas.
O presidente da Nicarágua não se referiu, no entanto, ao combate que muitos setores da Igreja Católica têm travado contra as políticas ditatoriais que tem levado a cabo, especialmente desde 2018, em que a violenta repressão de manifestações populares por questões de justiça social fez muitas dezenas de mortos.
Ortega também não se referiu ao bispo Silvio Baez, auxiliar de Manágua, que teve de fugir do país, perseguido pelo regime e por milícias pró-governamentais. E tampouco se referiu ao bispo Rolando Alvarez que, com vários padres, seminaristas e outros colaboradores, foi arrancado à força da Cúria da sua diocese de Matagalpa por uma aparatosa força policial, em agosto deste ano, estando detido com residência fixa e acusado de “conspiração para minar a integridade nacional e propagação de notícias falsas por meio da tecnologia” (julgamento com início em 10 de janeiro de 2023). Tal como não referiu o encerramento de serviços sociais e culturais de paróquias, o silenciamento de numerosos meios de comunicação social de instituições eclesiais ou a expulsão das Irmãs da Caridade (vulgo Madre Teresa da Calcutá).
Especialista de direitos humanos teme agravamento
Um quadro mais pormenorizado desta situação de perseguição e repressão pode ser consultado no relatório de uma advogada e investigadora dos direitos humanos, Martha Molina, publicado em maio último, intitulado “Nicarágua: una iglesia perseguida? (2018-2022)”
Nos meses decorridos desde a saída desse relatório, a situação agravou-se de tal forma que a autora teve de fazer um segundo relatório, complementar do primeiro, que acaba de sair. E, numa entrevista sobre a situação que se vive naquele país neste final de 2022, Martha Molina considera a Igreja o “último bastião” que está no terreno e se opõe à opressão na Nicarágua. E, olhando para o futuro, considera que os atos repressivos terão tendência a agravar-se.
Religiosos criticam falta de solidariedade do cardeal Brenes

O presidente da Comissão Internacional de Paz e Justiça da Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos (USCCB), juntou-se à exigência de libertação do bispo Rolando Álvarez, a exemplo do que já fizeram religiosos, defensores dos direitos humanos e ativistas políticos. “É com consternação que testemunhamos a contínua deterioração da liberdade religiosa e dos direitos humanos na Nicarágua”, disse o prelado dos EUA, num comunicado.
Por sua vez, cerca de 30 padres, religiosos e religiosas nicaraguenses, que se dizem a combater contra a ditadura na clandestinidade, fizeram chegar, em meados deste mês de dezembro, ao cardeal Leopoldo Brenes, arcebispo de Manágua, uma dura interpelação, exigindo que ele assuma uma posição mais frontal contra o regime de Ortega.
Recordando os atos recentes de perseguição à Igreja, esses religiosos citam o bispo exilado Silvio Baez que, numa homilia recente, se referiu aos presos políticos nicaraguenses, apelando: “não esqueçamos estes nossos irmãos e irmãs que sofrem injustamente e são acusados de crimes que não cometeram. Recordemo-los com carinho… A caminho do Natal não fiquemos indiferentes, elevemos as nossas orações”.
A carta a Brenes lembra que “enquanto centenas de milhares de nicaraguenses sofrem o drama da pobreza, do desemprego, da migração forçada, do encarceramento injusto ou do exílio doloroso, ou da perda de entes queridos das suas famílias”, o cardeal “faz todo o possível por evitar conflitos com a ditadura sanguinolenta”. Acusam-no mesmo de “falta de solidariedade” com os outros bispos, designadamente os que estão a ser perseguidos, mas com toda a comunidade nicaraguense.
A missiva termina pedindo ao cardeal que mude a forma de governar a diocese de Manágua numa perspetiva mais profética e mais próxima do povo.
Recorde-se que já houve pressões de vários lados para que o Vaticano e particularmente o Papa se pronunciassem sobre a situação, o que aconteceu em termos que foram considerados vagos. Apelou-se a todas as partes no terreno para que apostassem no diálogo. Brenes disse, mais de uma vez, querer assumir esse papel. Não são conhecidas nem iniciativas nem resultados nesse terreno.