
O relatório final da comissão independente inclui os testemunhos de dezenas de vítimas de abusos sexuais na Igreja em Portugal nos últimos 70 anos. Foto © doidam10.
O relatório final apresentado esta segunda-feira, 13 de fevereiro, pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa, que revelou que pelo menos 4.815 crianças foram vítimas de abusos na Igreja entre 1950 e 2022, inclui os testemunhos de muitas delas. Em baixo, partilhamos na íntegra as sete histórias, contadas na primeira pessoa, cujos resumos foram lidos pelos sociólogos Ana Nunes de Almeida e Vasco Ramos, durante a sessão de apresentação do documento.
Em todos os depoimentos, o discurso das vítimas é reproduzido de forma fiel ao modo como foi transmitido à Comissão Independente, preservando as expressões da oralidade e incorreções gramaticais ou ortográficas. De forma a manter o anonimato e a confidencialidade das pessoas, apenas se modificaram detalhes das respostas, removendo ou alterando informações relativas a locais concretos, a nomes das vítimas, de pessoas abusadoras ou de outras que sejam mencionadas.
“Atolado em pecado, não contava nada”
Abuso ocorrido em seminário no interior do País | Testemunho dado por M, nascido na década de 1950
Só aos 21 anos desabafei sobre as coisas que me aconteceram no Seminário. A minha família é muito católica. Os meus pais tiveram 11 filhos, sendo que 4 já morreram. O meu pai veio para Lisboa fazer a tropa. A minha mãe vem ter com ele e aluga um quarto onde vivemos até aos meus 6 anos. Nasci em Lisboa nesta casa onde não havia nem água, nem luz. Vivíamos perto dos Jerónimos e sou lá batizado. Íamos à missa todos os domingos. Eu tinha um fascínio enorme pelo padre Alberto Neto que celebrava as missas. Já morreu. Queria imitar a sua voz, era um fascínio. Imitava-o nas brincadeiras com os irmãos e primos. Os meus pais viam em mim a vocação para ser padre. Era assim nas famílias numerosas.
Aos 10 anos vou então para o Seminário em X, era uma forma de dar menos despesas aos meus pais, que viviam muito aflitos. Era uma aparente vocação. O padre B era o perfeito da camarata e engraçou comigo. Ia à minha cama com a lanterna e apalpava-me, perguntava-me se eu já pecara. Vivi sempre sobressaltado. Tinha medo porque era pecador e ia para o inferno. Mandava-me ir buscar rebuçados cada vez que tivesse maus pensamentos! Houve um dia em que consegui 26 rebuçados. Quando ia ao seu quarto buscar, ele apalpava-me todo e metia a língua toda!
O padre X era o que vinha à Igreja A dar a missa à RTP. Ele começava por dizer letras e eu palavras com asneiras, claro… Até que comecei a pedir para me confessar com outros padres para não ser sempre o mesmo, só que às tantas todos sabiam dos meus pensamentos e da minha vida. Através de um amigo, chegou aos ouvidos do vice-reitor que me deu um chapadão e fui expulso por más companhias. No Seminário as coisas extrapolaram para outras coisas, relação pedófila. Na páscoa chegou o postal a dizer que ia ser expulso. Desgosto enorme para os meus pais. Puseram-me a trabalhar, mas, não conseguiram.
Fui parar a Leiria a um refúgio para infância desvalida. Eram 20 rapazes órfãos. Estava lá o Frei W. Era bem pior porque era sádico, porco, muito mau. Não aprendia nada. Tinha modos por ter andado no Seminário e por isso no meio daqueles rapazes, era eu que acompanhava o Frei W. Um dia, fui com ele a casa de um benfeitor e durante a noite disse para dormir com ele. Ia rodando entre os rapazes. Deitava-se e adormecia. Acordava com o pénis dele entre as minhas pernas e todo sujo. Depois dizia, agora
tens que te ir confessar. Sentia muita culpabilidade. Atolado em pecado. Não contava nada na confissão, sabia lá!! Quando voltava das aulas para almoçar a comida era um nojo, uma desgraça, uma pobreza! Só havia arroz e pão, água, café e cevada. Isto é pior do que cuspir na sopa. Passei muita fome e muita violência. Uma vez levei tantas reguadas que nem me conseguia sentar! Gani, que nem um porco! Um dia, para proteger um amigo que estava de castigo, levando-lhe pão e água fiquei de castigo uma semana no vão das escadas. (…)
Só contei isto à mãe das minhas filhas, e depois a um amigo ou outro, aos meus pais contei num almoço, já com 21 anos. Tive dúvidas se iriam acreditar. Aos 15/16 anos deixei de ser sacristão na igreja de D. Adolescência muito complicada e revoltada. Fui vítima de bullying. Tinha tanta raiva de mim, que me batia a mim próprio. Achava que devia ter denunciado tudo. A culpa, a vergonha faz encolher tudo para dentro. (…) Isto está sempre presente em mim e sempre que posso, falo. Exercício de memória. Sinto alívio quando falo.
[Testemunho recebido por e-mail na Comissão Independente]

“Desabafei. Esta história eu nunca contei a nada nem a ninguém. Sou tímido e guardo muito para mim”, diz uma das vítimas. Foto © doidam10.
“Penso onde andará esse tarado, pois em qualquer sítio ele fará mal a outros.”
Abuso ocorrido em excursão da escola | Testemunho dado por M, nascido na década de 1980
M, nascido na década de 80, filho de professores, partiu numa viagem de finalistas de rapazes do 2.º ciclo, organizada pela escola particular que frequentava, no interior norte do País. Tinha então 12 anos e, durante a noite, foi vítima de abuso por parte do padre que os acompanhava, o seu professor de Religião e Moral Católica, na altura com cerca de 30-40 anos: exibição de zonas genitais; manipulação de órgãos sexuais; toque de outras zonas erógenas do corpo e/ou beijos nas mesmas zonas; masturbação (a si) e sexo oral (a si). Sabe que não foi o único: pelo menos os outros dois rapazes do meu quarto; éramos os mais tímidos, talvez os mais medrosos, estávamos juntos, eu fui uma noite, o F outra e o H foi duas vezes (a primeira e a última da viagem).
Escreve ainda no seu testemunho: Tenho vindo a ver o vosso trabalho, decidi que era agora. Sei que ele ainda é vivo mas já não trabalha naquela escola, mas penso onde andará esse tarado pois em qualquer sítio ele fará mal a outros. Nunca me esquece que o X não aguentou e uma noite chegou a meio da noite e vinha a chorar a chorar e estava sentado na cama dele no nosso quarto. Ele não disse nada e eu também não contei que já tinha sido vítima disso na noite anterior, desse tarado. Então perguntei-lhe se ele tinha medo e ele a chorar disse que sim e eu disse-lhe para ele se deitar na minha cama e assim dormíamos os dois e adormecemos, mas ele demorou tanto tanto a parar de chorar.
Não sei descrever mas isto foi no verão do ano 2000 e nós estávamos de viagem de turma e estávamos ali sozinhos, longe de casa e dos pais e não havia nada nem ninguém a quem contar e só nos consolamos um ao outro e desculpem pois agora estou a chorar que escrevo isto e não sei mais dele. No final dessa viagem acabamos a escola, separamo-nos e eu nunca mais o vi, soube que ele partiu com os pais para a emigração. Sabem o que penso, onde andará ele? E se um dia isto for com o meu filho, fdp do padre?
Desabafei. Esta história eu nunca contei a nada nem a ninguém. Sou tímido e guardo muito para mim.
Penso neles, e o A como é que ele aguentou duas vezes? Será que ele lhe fez igual a mim? E pior ao AB? Ou era este mais frágil e aguentou menos a situação? E por que nenhum de nós disse aos outros e ali ficamos todos em silêncio uns para os outros depois de ele nos ter despido, tocado, sugado, mexido até atingirmos o fim, perverso.
[Testemunho retirado do inquérito online]
“O Padre fazia-me perguntas porcas no confessionário”
Abuso ocorrido no confessionário | Testemunho dado por F, nascida na primeira década do século XXI
No seu 7.º ano de escolaridade, com 12 anos, F confessava-se com alguma regularidade enquanto andava na catequese. Os seus pais tinham profissões do setor dos serviços. Sentiu-se abusada pelo padre responsável pela confissão, com cerca de 45 anos.
Escreve: O Padre fazia-me perguntas porcas no confessionário. Obrigava as miúdas a falar de coisas porcas. Ele não tocava nas raparigas mas perguntava se nos masturbamos, se enfiamos o dedo, se pensamos em fazer amor. O mesmo acontecia com “muitas moças dos escuteiros e da catequese”.
Várias delas juntaram-se e contaram à chefe, que acreditou no relato das jovens. A chefe disse para não nos irmos confessar mais e que os chefes iam falar com o bispo. Não aconteceu nada. Nada foi feito: Nenhuma. Os escuteiros foram expulsos e o padre ainda lá está e eu sei que faz o mesmo.
Fiquei com muita vergonha e com pesadelos. Tenho muita vergonha ainda e acho que sou suja. Não consigo ter namorados porque tenho medo que me perguntem coisas ou queiram fazer coisas para me sentir porca. O padre meteu muita vergonha e perguntava coisas como se fosse maluco e arfava e gritava com as raparigas. Ameaçava com o diabo.
[Testemunho retirado do inquérito online]

“A chefe disse para não nos irmos confessar mais e que os chefes iam falar com o bispo. (…) Os escuteiros foram expulsos e o padre ainda lá está e eu sei que faz o mesmo.” Foto © Pexels.
“Il se colle avec son sexe sur le pantalon et commence à me caresser les fesses“
Abuso ocorrido na Capela das Relíquias | Testemunho dado por M, de nacionalidade francesa, nascido na década de 1970
Nascido na década de 70, M, de nacionalidade francesa, viera com os pais e o irmão mais novo passar férias a Portugal, durante o verão. Tinha então 16 anos e, como muitos turistas, visitavam a Capela na Igreja. Sentiu-se intimidado e amedrontado ao ver as caveiras expostas. Ao saírem, em fila indiana e dirigindo-se para a porta, vê alguém que identificou como um padre a olhar para si e a chamá-lo com a mão. Tinha recebido uma educação católica muito aberta e estimulante de modo que, partindo do princípio de que “padres eram pessoas em quem se podia confiar”, deixa a fila e vai ter com ele. Olhou para trás para fazer sinal aos pais e ficou convencido de que estes tinham percebido para onde fora (mas não).
O padre teria uns 60 anos e vestia um casaco e umas calças cinzentas. Leva-o para o fundo da igreja, e mostra-lhe uma virgem cujo olhar parecia acompanhar o nosso (efeito de ótica). Lembra-se de achar bastante “mágico”. Depois, leva-o para a Capela, sempre a falar português e com gestos, para “mostrar outra coisa”. Só os dois. Mostra-lhe os dentes das caveiras e depois
os dele. Começa a acariciar-se nas calças, sempre a olhar para M e ele nota que tem uma ereção. “Je ne me sens pas très bien… quelque chose qui ne va pas“. De repente, vê duas turistas entrarem na Capela e nota que um outro homem (acompanhado de um rapazito de 15 anos, talvez acólito) as impede de entrar, dizendo que já fechara. “Elles repartent“. Então dá-se conta de que
está sozinho com o padre, que se coloca atrás de si: “il se colle avec son sexe sur le pantalon et commence à me caresser les fesses“. “Pris de panique, j’entre dans un autre état“.
Entretanto, os pais lá fora notam a sua ausência e começam a procurá-lo: mandam o irmão mais novo ir ver dentro da igreja (não o encontra), a mãe fica à porta e o pai vai procurar nas ruas à volta da igreja. A um dado momento, o homem regressa e começa a falar com reverência com o padre. E este, subitamente, começa a falar em francês com M e a perguntar-lhe se o pai estava com ele, onde estava. Começa a enervar-se e repele-o, ordenando-lhe que saia.
M sai da Capela, entra na igreja completamente vazia e encontra a porta fechada à chave. Fica aterrorizado. Alguém por trás de si abre então a porta e fecha-a de novo à chave. Encontra no exterior os pais perturbadíssimos, diz-lhes que esteve com o padre e que ele lhe havia feito “coisas”. A mãe, muito católica, desvalorizou e ralhou-lhe: “que mania tens de fugir, assim ficas a saber que não deves afastar-te dos pais”. Entretanto, sai o padre da igreja e, a correr, entra num carro e desaparece.
Ainda hoje M se interroga sobre qual a razão para aquele homem ter corrido tantos riscos por causa de si. Renunciou certamente ao que queria fazer, porque percebeu que os pais estavam lá fora. Hoje não tem dúvidas que faria isso habitualmente.
[Testemunho recolhido em entrevista por Zoom]
“Estava [o meu irmãozito] agora no chão como um animal e ele por trás a enfiar-se nele”
Abuso ocorrido na casa de uma família pobre, na região Norte rural interior | Testemunho dado por irmã de M, nascido na década de 1940
Este testemunho foi escrito “pela sobrinha do ofendido”, a pedido da mãe, sua irmã, que testemunhou o que descreve.
Julgo que ninguém sabe disto, nem os meus primos, atualmente emigrados, e de verdade foi a minha mãe que pediu para vos contar tudo o que sendo para mim um choque enorme eu acedi. Muito obrigados de todos nós, obrigada.
Eis o que consta do testemunho:
O meu irmão faleceu agora. Ora eu penso que ele nunca contou nada do que eu vi. E o que eu vi não foi bonito e não posso ir eu para o outro mundo, falecendo e carregar comigo este segredo. Uma vez, na tal casita eu estranhei, eu estranhei e quando lá fui espreitar estava o meu irmão, coitadinho, ele era muito bonito e perfeito, branquinho de pele, estava ele despido de calças e roupa de baixo e o Padre assim meio que no chão a pôr o órgão dele na boca.
Nunca tal tinha visto na vida, dantes essas coisas não se viam. Pareceu tudo muito a passar muito rápido, pois fugi com o olhar e quando voltei a olhar estava o meu irmãozito, coitado dele o que sofreu, sei lá eu o que aquela alma pode ter sofrido, estava ele agora no chão como um animal e ele por trás, o Padre, a enfiar-se nele e ele aflito de lágrimas de chorar. Peço desculpa, mais eu já não consigo contar e espero que chegue para saberem que foi tudo verdade.
O abuso, que consistia em sexo anal e sexo oral praticados na vítima, com a idade de 13 anos, acontecia “em casa dos próprios Pais, numa casita que havia no quintal para guardar coisas. (…). O Padre, que deveria ter cerca de 40 anos, visitava a casa após a morte do nosso Pai para dar apoio à nossa Mãe e ao meu irmão que se tornou muito revoltado (…). Não esteve muito tempo na paróquia.”
O meu irmão, pois sou eu a irmã mais velha que está a contar esta história através da minha filha que a está a escrever conforme eu vou dizendo, o meu irmão, só sabemos que como eu ajudava a minha mãe pois ficamos sem o meu Pai e era preciso tratar das coisas da casa, pois como dizia era eu que pelos meus 16 ou 17 anos lavava a roupa e por essa altura a roupinha dele tinha sempre sangue e eu penso que percebia que podia ser daquilo que eu vi, mas podia não ser… Ele detestava Padres, tanto que disse que quando morresse havia de não querer nenhum, que o deixassem era ir em Paz e assim foi, quando ele faleceu agora há pouco tempo”.
[Testemunho retirado do inquérito online]

“Um arco à frente e por trás desse arco, do lado esquerdo, o confessionário. Escondido. À medida que duas, três ou quatro colegas voltavam para os seus lugares, vinham coradas, nervosas, para mim estranhas.” Foto © mammuth.
“Ainda sinto a sensação de quase morrer asfixiada com a pimenta na garganta”
Abuso ocorrido num colégio de freiras | Testemunho dado por F, nascida nos anos 1960
Nascida na década de 60 do século passado, frequentou durante treze anos um colégio de
freiras perto de uma grande cidade do centro do País. Fazendo um balanço desse percurso naquela escola, escreve: No geral não tenho razoes para apontar ao ensino, disciplina, tempos recreativos, colegas e professores. Era tudo seguro, bom, alegre, feliz.
Aos oito anos, porém, foi vítima de uma experiência traumática, que relata detalhadamente no seu testemunho:
Quando estávamos a preparar-nos para a Primeira Comunhão, na disciplina de Religião e Moral, a nossa turma de 28 alunas dividiu-se em grupos de dez. O meu grupo foi para a Capela, onde ficamos sentadas nos bancos, à espera. Um arco à frente e por trás desse arco, do lado esquerdo, o confessionário. Escondido. À medida que duas, três ou quatro colegas voltavam para os seus lugares, vinham coradas, nervosas, para mim estranhas. Quando chegou a minha vez percebi porquê. As palavras suaves do Padre, as festas na mão, na cara, nas costas, e a seguir, dentro das minhas cuecas. E sempre com palavras suaves. Senti-me mal, aquilo não era normal, era esquisito, falso, e desconfortável.
Comentei não me lembro com quem do meu grupo de colegas, e passado um tempo, talvez duas horas depois, não tenho bem a noção, a Madre chama-me ao quadro e diante da turma diz que sou uma mentirosa, pecadora e que devia ser castigada. Lembro-me de ter a cabeça a mil, sem perceber nada e olhar para as minhas colegas a tentar entender o que e que tinha feito!! Nenhuma deu sinal, apesar do ar comprometido, nada.
Então a Madre manda-me ir às cozinhas buscar uma colher de sopa de pimenta em pó, e que “não deixasse cair nem um bocadinho”. E cheguei à aula com a colher cheia. Fez-me engolir tudo de uma vez diante da turma inteira. Porque era uma pecadora e mentirosa e tinha que ser castigada. Em público. Ainda sinto a sensação de quase morrer asfixiada com a pimenta na garganta, nariz, pulmões, olhos, ouvidos…Senti-me violentada pela segunda vez no mesmo dia.
Recordo, tinha 8 anos e estava a preparar-me para a Primeira Comunhão num Colégio de freiras, prestes a ser uma discípula de Cristo, e que pensava que os bebés eram abelhas, flores ou cegonhas. No entanto, continuo a ser uma pessoa de fé.
[Testemunho recebido por email na Comissão Independente]