
The Scapegoat, por William Holman Hunt, 1854 © Lady Lever Art Gallery, Port Sunlight.
No livro recentemente editado, Populismo Religioso e Secularização, da autoria de José Brissos-Lino e de Jorge Botelho Moniz, podemos verificar como os recentes fenómenos populistas, que surgiram recentemente na América, tanto nos Estados Unidos, como no Brasil, e agora na Rússia, revelam uma estreita correlação entre política e religião. De facto, no dizer dos autores, esses tipos de populismos hipotecam valores essenciais da fé, em nome de outros interesses, dando ocasião a processos de desvirtuamento do próprio sentido da religião. Regra geral, os líderes populistas religiosos conseguem criar a ilusão de proximidade com as massas, criando uma empatia com os seus medos, necessidades e aspirações. Socorrem-se igualmente de uma linguagem bastante básica nos seus discursos, dando a entender que compreendem os dramas e necessidades do seu auditório, fazendo ver, inclusive, que são a chave para a resposta sobrenatural às respostas dos fiéis.
Um dos grandes contributos do pensamento de René Girard no campo da antropologia foi o conceito de bode expiatório, cuja reflexão sobre o “mecanismo sacrificial” tentará explicar muita da violência coletiva a que temos vindo a assistir nestes últimos tempos, especialmente no fenómeno do nacionalismo e fundamentalismo religioso. Quando os grupos populistas religiosos se confrontam com aquilo que interpretam como decadência dos seus ideais de santidade e de pureza, existe por parte destes a necessidade de procura de uma ou mais vítimas — os chamados bodes expiatórios. Quando as pessoas tentam encontrar respostas rápidas para aquilo que por vezes acontece no seio das suas sociedades como, por exemplo, a falta de segurança, as crises e decadência da família, a perda de autoridade, são muitas vezes os grupos fundamentalistas religiosos que estão na primeira linha para a oferta de soluções.
Alguns dos casos mais gritantes desses populismos religiosos têm sido observados muito recentemente. Na inauguração da nova catedral das Forças Armadas russas em Moscovo, o patriarca ortodoxo Cirilo I referiu-se ao governo de Vladimir Putin como um “milagre de Deus”, mantendo a esperança de que as gerações futuras peguem no bastão espiritual das gerações passadas e salvem a Pátria de inimigos internos e externos. A própria guerra em curso com a Ucrânia é vista igualmente pelo patriarca como uma guerra santa contra a decadência do ocidente.
Os ucranianos, além de estarem a pagar pelos seus erros cismáticos (a Igreja Ortodoxa ucraniana separou-se da sua congénere russa), também eles, tal como Gomorra e Sodoma, decaíram-se moralmente ao permitir as paradas gays. Também na América e durante a presidência de Barack Obama, o famoso líder religioso norte-americano fundamentalista Franklin Graham, ao ser confrontado com as políticas progressistas do seu presidente elogiou Vladimir Putin, no decurso dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2014, por este ter proibido a propaganda da homossexualidade e da pedofilia, protegendo assim as crianças da “propaganda da homossexualidade”. De notar que o próprio Graham, um dos grandes apoiantes de Donald Trump, encontrou-se com o patriarca em 5 de março de 2019, onde este último o relembrou da concordância de ambos acerca da compreensão cristã do casamento, família e da sacramentalidade da vida humana desde o momento da conceção. Também no Brasil existe uma forte promiscuidade entre o presidente Jair Bolsonaro e alguns sectores conservadores das igrejas evangélicas, os quais se assumem como defensores acérrimos da família tradicional contra aqueles que a querem destruir, ou seja, as comunidades gays e os defensores da ideologia do género.
Como afirma Wolfgang, professor do Departamento de Teologia Sistemática da Universidade de Innsbruck, o populismo e a religião relacionam-se fortemente com o medo. Enquanto o populismo alimenta o medo e é fortalecido pelo seu incremento, a religião é um dos meios mais antigos para responder aos medos humanos. Dependendo do tipo de religião, esta pode apoiar a demanda dos populistas por bodes expiatórios, geralmente os outros, os que são diferentes de nós como, por exemplo, os estrangeiros, os homossexuais ou os transgéneros. Escolher determinadas categorias sociais como bode expiatório a fim de impor-lhes a culpa para os muitos males que vão ocorrendo e assim legitimar a violência, não é certamente o caminho que Jesus defendia. As transformações, a ocorrerem, terão de vir do interior do ser humano, fruto certamente de uma profunda conversão, não pela força, mas tão-somente operadas pelo espírito amoroso e misericordioso de Deus. Perante este cenário, os grandes desafios que se apresentam às sociedades e igrejas passam assim pelos caminhos da abertura à pluralidade, do acolhimento e escuta do outro. Só assim se conseguirá eliminar muitos dos falsos sentimentos de medo incutidos e melhor combater os populismos, inclusive o religioso.