
Torre de Babel. Lucas van Valckenborch, 1594, Museu do Louvre: “Os apelos aos instintos básicos, as demonstrações de incongruência e a proliferação da insignificância deterioram o espaço público.”
É cruel a guerra pelos dois ou três minutos de fama nos media; é feroz o combate por visualizações, partilhas e comentários nas redes sociais. A atenção é um bem escasso que é preciso disputar sem piedade. A intensificação da concorrência oferece uma cacofonia deplorável.
É verdade que há quem queira obter atenção de um modo respeitoso – e até, tantas vezes, sofisticado – por alguma razão útil, mas os mais eficazes são os que percebem que o modo mais simples de a capturar é através da provocação despropositada. Dizer ou fazer algo que escandalize é um caminho sem atalhos para garantir audiência. Para a conquistar e a manter, nada melhor do que uma dose maciça de radicalismo, seja ele temperado pela ignorância, pela estupidez ou pela maldade.
Uma inconveniência oca ou uma afirmação tola são bons iscos. Suscitam sempre comentários, comentários dos comentários, comentários dos comentários dos comentários e assim sucessivamente até ser mordido outro isco. Mas uma injúria pessoal que divida a turba entre prós e contras e que a acirre – impedindo-a de qualquer esforço de empatia – é um engodo ainda mais eficaz para impedir a modorra. Não é necessário um aprofundado conhecimento sobre o modo de funcionamento dos media ou sobre psicologia das multidões para se saber que, para mobilizar a atenção geral, uma manifestação de palermice ou a excitação das pulsões rudimentares são bem mais eficazes do que o argumento assente no conhecimento e na ponderação.
Mesmo as polémicas – que podiam ser muito bem-vindas – têm de ser sanguinárias ou, pelo menos, insultuosas se os polemistas quiserem ter alguém desperto na plateia. Sem extremar posições e sem fulanizar o alvo, os fanáticos não conseguem mobilizar as hordas que, rosnando, ora aplaudem, ora condenam.
Fazem-no, amiúde, com assinalável incongruência, ainda que se saiba que a coerência não é valor que lhes importe. Quando uns pedem liberdade para falar, outros pedem o silenciamento dos adversários. Depois, as posições trocam-se e os que queriam os adversários calados passam a defender a liberdade de expressão própria, enquanto que quem queria falar livremente passa a reclamar o amordaçamento dos adversários. A minha liberdade de expressão é melhor do que a tua. O mesmíssimo acto será defendido ou condenado conforme seja protagonizado pelos nossos ou pelos deles.
Os casos deploráveis de contradições em apologias ou em fiscalizações multiplicam-se exponencialmente, tocando gente que se poderia considerar respeitável. Uma pessoa, usualmente amante da liberdade de expressão, reclama a deportação do autor de uma afirmação por a ter considerado repugnante. Outra pessoa, favorável à criminalização de autores de piropos, defende a impunidade de um indivíduo que afirmou que alguém deveria cravar uma picareta na cabeça de um determinado político.
Os apelos aos instintos básicos, as demonstrações de incongruência e a proliferação da insignificância deterioram o espaço público. Num confronto entre o importante e o fútil, o frívolo facilmente triunfa. Uma notícia sobre o gato de Ronaldo e de Georgina enviado para Espanha em avião privado após ter sido atropelado em Turim [1] seria mesmo considerada como assaz importante por tantos, que, em contrapartida, julgarão irrelevante estar informado sobre a repressão empreendida pela China contra os muçulmanos uigures [2]. Certo, certo é que muitos sabem que o gato se chama Pepe e raríssimos saberão, simplesmente, quem são os uigures.
Notas
[1] “Gato de Gio e Ronaldo viaja de jato privado”. Correio da Manhã, 25 de Janeiro (o assunto já tinha sido noticiado pela imprensa estrangeira – Corriere della Sera, Daily Mail, Daily Mirror, The Sun e New York Post, por exemplo).
[2] “La question du sort des Ouïgours s’invite au Conseil des droits de l’homme de l’ONU”. Le Monde, 26 de Fevereiro.