
Joan Margarit: “Pensei que me restava todavia / tempo para entender a profunda razão / de deixar de existir.” Foto: Direitos reservados, a partir da página do poeta na internet.
Na Quarta-feira de Cinzas, no dia em que os católicos foram instados a ter em conta com singular premência as palavras do livro do Génesis que lhes lembram que são pó e que ao pó hão-de tornar, o diário espanhol El País incluiu na página 30 uma breve meditação sobre a morte, da autoria do poeta Joan Margarit, falecido no dia anterior. Bons espíritos sustentam que a poesia ocidental fala quase exclusivamente de amor e de morte. Não seria, também por isso, de estranhar o tema do poema inédito de Joan Margarit, que poderá ter sido escrito no período em que o autor teve de enfrentar o cancro que o vitimaria.
O poema, que integrará o livro Animal de bosque, a publicar, intitula-se “Comovedora indiferença”: “Pensei que me restava todavia / tempo para entender a profunda razão / de deixar de existir. Comparava-o / com o desinteresse, com o esquecimento, / com as horas do sono mais profundo, / pensando nessas casas onde um dia vivemos / e às quais não voltamos nunca. / Pensava que o ia compreendendo, / que me ia libertando do enigma. / Mas estava muito longe de saber / que não me liberto. Liberta-me a morte, / permite, indiferente, / que me vá aproximando de alguma verdade. / Inexplicavelmente, isto emocionou-me.”
A poesia não é uma questão de rima, de ritmo ou de métrica, nem, menos ainda, do seu desprezo, escreve Joan Margarit na introdução a Novas cartas a um jovem poeta, incluídas no livro Un mal poema ensucia el mundo. Ensayos sobre poesía, 1988-2014 [1]. Crê o poeta que não há arte sem esforço e que nem o esforço para escrever um bom poema é suficiente. Acredita, em contrapartida, que mesmo uma pessoa que tenha lido pouco – “nem que seja apenas a imprensa” – se pode converter num bom leitor de poesia. “Mas isto não quer dizer que para ler um bom poema basta o mesmo esforço, a mesma tensão, a mesma atenção, que para ler a imprensa”. Para Joan Margarit, “como em todos os aspectos importantes da vida, na poesia nada é oferecido”.
Numa entrevista concedida ao diário ABC [2], o poeta referiu que há dois tipos de intempéries: a intempérie física, que não é particularmente ameaçadora no mundo ocidental porque a técnica a permite enfrentar, e a intempérie moral. “O que se passa se me abandona a pessoa que amo, se morre alguém querido, se fracassei em algo?”, pergunta Joan Margarit. “A ciência não o resolve, não existe um botão em que se carregue”. A resposta insuficientemente útil impõe outra interrogação: “Que ferramentas tenho para lutar contra a intempérie moral?” Joan Margarit indica-as: “A poesia, a música, a pintura, a filosofia e a religião para alguns. Apenas quatro ou cinco coisas”. E todas elas, acrescenta, têm “uma característica terrível” em comum. É que é necessário tê-las conhecido para que possam ser úteis. É por isso que considera ser imprescindível dar cultura às pessoas. Não entretenimento, mas cultura. A cultura é uma arma contra a intempérie moral. “Para isso serve a poesia. Não é um adorno”.
Joan Margarit, que também era arquitecto (integrou a equipa encarregada de concluir a construção da Sagrada Família, em Barcelona) e professor catedrático jubilado de Cálculo de Estruturas da Escola Superior de Arquitectura de Barcelona, manifesta o seu apreço pelos poemas que contribuem para o fazer melhor pessoa, que o ajudam na procura de um maior equilíbrio interior, que servem para o consolar ou que concorrem para o deixar mais próximo da felicidade, seja o que for que signifique ser feliz.

“A vida para mim é esta rocha. / Carrego-a e conduzo-a até ao alto.” Foto: Direitos reservados, a partir da página do poeta na internet.
Misteriosamente feliz é, aliás, o título de um dos seus livros, publicado em Portugal em Novembro passado conjuntamente pela Flâneur e pela Língua Morta [3]. É uma obra excelente. Particularmente memorável é “Poesia”: “Como para Sísifo, / a vida para mim é esta rocha. / Carrego-a e conduzo-a até ao alto. / Quando cai volto a buscá-la / e, tomando-a entre os braços, / levanto-a outra vez. / É uma forma de esperança. / Penso que teria sido mais triste / se não tivesse podido arrastar uma pedra / sem outro motivo que não fosse o amor. / Levá-la por amor até ao alto.”
Notas
[1] Barcelona: Arpa y Alfil Editores, 2016
[2] “Joan Margarit: ‘El esfuerzo y el dolor que produce la verdad valen la pena’”. ABC. 9 de Junho de 2015
[3] Há uma edição anterior da Língua Morta, de 2015.
Este texto é também publicado no Diário do Minho.