
O coordenador da Comissão Independente, Pedro Strecht, na apresentação do relatório final sobre abusos sexuais de crianças na Igreja em Portugal. Foto © Clara Raimundo/7Margens.
As dioceses de Beja e de Setúbal contestam a versão surgida no relatório da Comissão Independente (CI) para o Estudo dos Abusos Sexuais sobre Crianças na Igreja Católica em Portugal segundo a qual nãon teriam respondido ao pedido da CI para entrevistas no âmbito da investigação para o relatório.
O bispo de Beja, João Marcos, afirmou agora ter ficado “surpreendido” com essa referência, enquanto o administrador apostólico da diocese de Setúbal (a diocese está sem bispo há quase um ano) esclareceu em comunicado que houve falhas de comunicação, precisamente em razão de a diocese estar em fase de transição.
Em declarações ao Observador, o bispo de Beja diz que respondeu à CI em Outubro, pois na altura do primeiro contacto, entre Março e Maio, tinha acabado de ter um AVC (ligação para assinantes), e esqueceu-se de responder.
Também à RTP o responsável da diocese alentejana diz que respondeu à CI em 29 de Outubro e já no passado dia 7 deste mês entregou de novo cópia da carta a um membro da comissão dos arquivos que colaborou com a CI.
Na carta, de acordo com as informações do bispo à RTP, seguiam mais quatro casos de abusos – “diferentes” dos cinco testemunhos que a CI tinha já recolhido, respeitantes aquela diocese.
Já em Setúbal o caso foi diferente: a diocese ficou sem bispo no dia 13 de Março do ano passado, quando José Ornelas tomou posse da diocese de Leiria-Fátima, para a qual tinha sido nomeado no dia 28 de Janeiro. Como administrador apostólico foi eleito o padre José Lobato, que ainda se mantém no cargo, pois não nenhum bispo ainda nomeado.
O bispo Ornelas foi entrevistado já na sua nova diocese. Nesta quinta-feira, em comunicado, o padre José Lobato esclareceu que “nunca recebeu, para a realização de uma entrevista, qualquer contacto” da CI. “Falando com Ana Nunes de Almeida, membro da Comissão Independente, concluiu-se que houve certamente uma falha de comunicação neste tempo de transição, afirmando a socióloga não ter havido qualquer indício de recusa do padre José Lobato em ser entrevistado”, diz o comunicado da diocese, que esclarece, entretanto, que o mesmo responsável recebeu os membros do grupo de estudo dos arquivos diocesanos que colaborou com a CI, aos quais abriu “totalmente os arquivos” por duas vezes.
Mais casos

O CNE comunicou 19 casos de abusos à CI, mas esta recolheu mais sete testemunhos de episódios de violência sexual ocorridos no interior da organização. Foto © CNE
Além destes esclarecimentos, vieram a público posições de diferentes bispos e outras instituições católicas acerca dos resultados divulgados segunda-feira pela Comissão formada a convite da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) e liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht.
O relatório regista pelo menos 4815 vítimas de abuso por parte de membros da hierarquia ou responsáveis de instituições católicas durante os últimos 72 anos (1950-2022).
Em comunicado, a congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus, ou padres dehonianos, manifestou “total disponibilidade” para escutar as vítimas de abusos sexuais nas suas instituições e reconheceu a existência de quatro casos, na sua história, entre 1950-2022, o período estudado pela CI.
“No caso da nossa Província, estudámos o nosso passado e identificámos dois casos de abuso sexual sobre menores. Posteriormente, a investigação histórica” da CI relatou “outros dois casos”, diz o responsável da congregação em Portugal, padre João Nélio Pereira.
A congregação tem um serviço de escuta para quem queira expor o seu caso ou dar testemunhos, que continua disponível no endereço escutarecuidar@dehonianos.org
Também o chefe nacional do Corpo Nacional de Escutas, Ivo Faria, afirmou em declarações à TSF, que o CNE comunicou 19 casos de abusos à CI, mas esta recolheu mais sete testemunhos de episódios de violência sexual ocorridos no interior da organização do Escutismo Católico português.
Nos Açores, o novo bispo de Angra, Armando Esteves Domingues, afirmou que “pedir perdão em nome da Igreja é pouca coisa”, para acrescentar: “Gostaria de o poder provar e fá-lo-emos. Se alguém quiser procurar-me, como tanta gente o faz, estarei disponível, tal como a Comissão Diocesana [de Protecção de Menores] para o atender.
O relatório da CI apresenta oito casos de alegados abusos em cinco ilhas da Região Autónoma, que corresponde ao território da Diocese de Angra. O bispo, que tomou posse há um mês, disse que os casos foram “novidade” para ele, porque a Comissão Diocesana não recebeu “denúncias”, mas fez questão de garantir às vítimas que, “que se em momento algum se sentissem sós, não estão sozinhas”, de acordo com a Ecclesia e o portal Igreja Açores.
Em Santarém, o bispo José Traquina elogiou o trabalho e a composição da CI, de acordo com o levantamento de posições de bispos feito pela agência Ecclesia. Tendo estado na Gulbenkian a assistir à apresentação do relatório enquanto membro do conselho permanente da CEP, o responsável católico confessa ter ficado “chocado com a leitura de tantos testemunhos de abusos” na apresentação do relatório, mas sublinha a importância da realização do efeito “pretendido: conhecer e enfrentar o problema dos abusos, começando pela atenção às pessoas abusadas e cuidar de prevenir quanto ao futuro”.
Hierarquia “falhou”

Assembleia plenária da Conferência Episcopal: vários bispos admitem agora que houve erros na forma de lidar com os abusos. Foto © Agência Ecclesia/PR
O bispo auxiliar de Braga, Nuno Almeida, coordenador da Comissão de Proteçcão de Menores e Adultos Vulneráveis da Arquidiocese de Braga também reagiu admitindo que a hierarquia católica “falhou” no modo de enfrentar o problema: “As páginas duras do Relatório confirmam que a luta contra os abusos sexuais por parte de membros da Igreja ou no âmbito das suas actividades, no passado, não foi uma prioridade para a Igreja e houve erros, omissões e negligência”, refere D. Nuno Almeida, num texto publicado na sua página no Facebook.
“Ainda não temos programas de acompanhamento psiquiátrico e psicoterapêutico, de acompanhamento espiritual e de reconciliação para as vítimas e abusadores. Há que estudar as boas práticas de outros países e avançar também em Portugal com percursos de cura e reconciliação”, escreve o bispo.
A Igreja tem de “procurar acompanhar a todos os que foram feridos por esta indignidade”, escreve entretanto, numa nota enviada também à Ecclesia, António Augusto Azevedo, bispo de Vila Real. Também o Conselho Presbiteral da diocese manifestou “a mágoa” sentida “pela realidade expressa pelo relatório agora tornado público” e afirmou “a necessidade de encontrar todos os meios preventivos para que novos casos não voltem a suceder, de forma que os espaços eclesiais sejam espaços mais seguros, acolhedores e fraternos, nomeadamente para com os mais jovens e vulneráveis”.
Um comunicado da diocese da Guarda diz que os casos sinalizados pelo relatório são um mal que “poderá prescrever” nas instâncias canónicas e civis, mas “a nível moral nunca o mal poderá prescrever”. Neste caso, o bispo Manuel Felício completou 75 anos em Novembro passado, o que significa que terá apresentado ao Papa a sua resignação, mas esse facto ainda não foi confirmado publicamente. Manuel Felício é um dos bispos cujas declarações, em vários casos, como o do padre Luís Mendes, do Seminário do Fundão, levantaram dúvidas sobre eventuais encobrimentos.
Tolerância zero e orações

O cardeal-patriarca pediu orações pelas vítimas nas missas do próximo domingo. Foto © Pixabay
O comunicado reafirma “a vontade de tudo fazer para que situações destas não voltem a acontecer, procurando fomentar em todas as instituições da Igreja uma cultura de prevenção, cuidado e transparência, com ‘tolerância zero’ para qualquer tipo de abusos”. Ao mesmo tempo, lê-se no texto que a Diocese da Guarda irá promover uma “formação dirigida a todos os agentes pastorais” no sentido da prevenção. Disponibilidade para a escuta de eventuais novos casos e o “acompanhamento de vítimas identificadas em todas as dimensões do seu equilíbrio humano e pessoal” são também promessas vertidas no comunicado da Diocese da Guarda.
Em Lisboa, o cardeal-patriarca pediu a todos os padres que tenham como “principal intenção”, nas missas do próximo domingo, as vítimas de abusos sexuais, nomeadamente as crianças e os adultos vulneráveis.
O bispo do Porto, Manuel Linda, cujas sucessivas declarações polémicas foram motivo de muita contestação, publicou também um comunicado a condenar os actos “hediondos” dos abusos sexuais de crianças na Igreja Católica. “Mesmo que, por vezes, no passado, não tenha utilizado a linguagem mais apta para exprimir o que sinto e penso, tudo farei para punir e pôr cobro a este flagelo”, escreve, numa nota citada pela Ecclesia.
Apesar de ter menosprezado a necessidade da investigação a casos de abuso em Portugal, comparando essa possibilidade à queda de um meteorito no Porto, o bispo admite agora a “oportunidade e a urgência” da criação da CI “já que, ao contrário do que se imaginava, as vítimas não estavam a recorrer às Comissões Diocesanas”. E afirma, sem poupar nos adjectivos: “Sofro e choro pelas vítimas de actos que são absolutamente hediondos, inqualificáveis, e que têm de ser combatidos com toda a nossa energia.”
A Conferência Episcopal Portuguesa reunirá no dia 3 de Março, numa assembleia plenária extraordinária, para debater as conclusões do relatório e decidir o que fazer perante esses dados.