
“Como diz o poeta (que traduzo livremente), ‘tudo quanto é belo é uma fonte perene de alegria’.” Foto © Miguel Marujo.
“A thing of beauty is a joy forever”
John Keats, Endymion
Há meses que somos inundados com imagens terríveis de uma guerra longínqua que nos afecta a todos. Acredito que ninguém fica insensível com a visão diária dos campos devastados, das cidades em ruína, das gentes que vivem em condições terríveis mas que, apesar de tudo, conseguem manter intacta a sua dignidade de seres humanos, com gestos de coragem, de abnegação e de partilha.
No bairro em que vivo, todos os anos, pelo mês de Maio, somos surpreendidos por uma onda de beleza – os jacarandás em flor. E durante muitos dias envolve-nos esse esplendor lilás que paulatinamente se vai transformando num pó arroxeado a pintar os passeios.
Das cidades ucranianas que vamos conhecendo pelos telejornais temos uma visão devastadora e admiramo-nos com entrevistas em que as pessoas têm a coragem de falar do tudo o que lhes foi tirado, não perdendo a esperança de uma vida melhor e de uma paz que cada vez se afigura mais longínqua.
Ao ouvir estes testemunhos sou levada a recordar Etty Hillesum, alguém que em circunstâncias dramáticas de guerra e de perseguição, nunca perdeu a confiança em Deus, nem o sentido da beleza das coisas, em comunhão com a natureza.
Etty foi uma judia holandesa, durante muito tempo desconhecida do grande público. As Cartas e Diário que nos deixou relatam a situação dos judeus holandeses durante a última guerra. A sua publicação tardia[1] permitiu-nos conhecer o percurso de alguém que nas condições terríficas de um campo de refugiados, e posteriormente em Auschwitz, nunca deixou de admirar a beleza do mundo natural, conseguindo, no meio da lama extasiar-se com uma flor:
“Eu estou com os esfomeados, com os maltratados e com os moribundos, todos os dias. Mas estou também com o jasmim e com aquele pedaço de céu para lá da minha janela; há lugar para tudo na nossa vida.” (Etty Hillesum, Diário, p. 214).
Etty solidarizou-se com os perseguidos, cujo destino partilhou. Sofreu na pele a sorte trágica que recaiu sobre os judeus, primeiro como membro do Conselho Judaico, actuando em Westerbork, um campo de passagem antes do destino final em Auschwitz. Para os que com ela lidaram nesse contexto, foi uma presença luminosa, o conforto possível dado pela palavra e pelo abraço – “o coração pensante da barraca.” E no cuidado que a tudo e a todos dispensou, Etty não esqueceu a Natureza, colocando-a no centro da sua atenção. O campo, o rio, as flores, eram motivo de pequenas alegrias que constantemente lhe lembravam a presença de Deus. Um Deus que ela se propunha ajudar sendo sensível à beleza da criação e congratulando-se com ela. Por isso escreveu:
“Não te trago somente as minhas lágrimas e pressentimentos temerosos, até te trago, nesta tempestuosa e parda manhã de Domingo, jasmim perfumado. E hei de trazer-te todas as flores que encontre pelo caminho, meu Deus, e a sério que são muitas. Hás de ficar sinceramente tão bem instalado em minha casa quanto é possível. (…) Se eu estivesse encerrada numa cela acanhada e uma nuvem passasse ao longo da minha janela gradeada, então eu iria trazer-te essa nuvem, meu Deus, se pelo menos ainda tivesse forças para isso.” (Diário, p. 253)
A contemplação de uma flor proporcionava-lhe momentos de alegria, mesmo quando a encontrava num terreno cheio de lama. E por isso foi capaz de gestos gratuitos como a compra de um ramo de rosas, ao regressar a casa, depois de um dia de trabalho no campo de deportados.
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Nos noticiários que diariamente nos informam da guerra não vemos campos de trigo nem flores – vemos feridos, famílias destroçadas, crianças e adolescentes que viajam sozinhos. Um dos meus netos que foi à Ucrânia buscar refugiados levou-os à praia, quando chegaram a Portugal. Vou sugerir que os leve a ver os jacarandás em flor pois, como diz o poeta (que traduzo livremente), “tudo quanto é belo é uma fonte perene de alegria.”
Maria Luísa Ribeiro Ferreira é professora catedrática de Filosofia da Faculdade de Letras de Universidade de Lisboa
Nota:
[1] Escritos nos anos 40 do século passado, só nos anos 80 foram editados em holandês e posteriormente traduzidos noutras línguas. Entre nós, as versões portuguesas apareceram em 2008 e 2009, na Assírio e Alvim.