Os lugares da viagem do Papa ao Iraque erguem memórias que abarcam desde o berço da civilização nas planícies do sul da Mesopotâmia e de toda a sua história até ao berço da expansão judaico-cristã, nos vales e montanhas entre a Assíria e a vizinha Arménia. Ali começou a viagem de Abraão, ali Francisco regressa numa visita que traduz o reencontro e a reafirmação da fraternidade. Um percurso pelos lugares da viagem, ao encontro da memória desses lugares.

A quase totalidade dos lugares da visita papal reenvia para o chão histórico da aventura humana avançada, que se desenvolveu na Mesopotâmia desde há mais de cinco mil anos. Foto: Pormenor da Porta de Ishtar, atualmente no Museu Pérgamo, em Berlim. Foto © Francisco Anzola/Wikimedia Commons
Para acompanhar a histórica viagem do Papa Francisco ao Iraque, procuramos prestar atenção ao significado com que cada um dos lugares visitados pode contribuir. Decorrendo esta viagem em regiões tão representativas da história e da atualidade do Médio Oriente, faz sentido iluminar a própria ideia de lugar com o significado que lhe vem da filologia semítica. Parecendo tão banal, o termo que, em hebraico, designa um “lugar” (maqom) é um substantivo que deriva do verbo “erguer” (qum). Seria assim um sítio onde foram erguidos monumentos, memórias, altares… Sítios, enfim, de denso significado funcional e simbólico. Conteúdos profundos como estes podem andar escondidos nas nossas palavras de usos mais prosaicos.
O conteúdo das memórias que sobem das profundezas deste Oriente traz consigo muito das memórias e vivências do mundo judaico-cristão das origens. O mundo da Mesopotâmia, representado agora pelo Iraque, foi realmente um espaço onde judaísmo e cristianismo deram alguns dos primeiros passos na difusão para fora da Palestina e onde por mais tempo conservaram entre si as cumplicidades da origem. Formas mistas de judaísmo e cristianismo, como os restos do movimento batista e os mandeus, mantiveram-se ali vivos durante séculos e são visíveis ainda nos dias de hoje.
As igrejas cristãs siro-mesopotâmicas e o judaísmo ganharam, entretanto, outras cumplicidades com as raízes culturais do fundo mesopotâmico e acolheram novas sensibilidades no contexto do islamismo, até pelo facto de entre si falarem o árabe.
Na prática, a presença do cristianismo por todo este Oriente, nele incluindo o próprio caso de Israel atual, tem sido um contínuo exercício sofrido, paciente e sempre sob ameaça de extinção.
Há que redescobrir sentimentos de tolerância e solidariedade, de vida e de consciência, entre seres humanos que não têm outra possibilidade senão a de se assumirem como sendo iguais e irmãos, libertando-se da ganga discursiva de doutrinas e estratégias superficialmente religiosas. A realidade histórica ali vivida desde há largos milénios é feita de contínuas misturas de povos, sumérios, semitas, asiânicos autóctones e indo-europeus, organizando-se em sucessivos impérios: Suméria, Acádia, Babilónia, Assíria, Pérsia e ainda os Selêucidas, Romanos, Partas ou Arsácidas e Sassânidas e Otomanos, prolongando-se praticamente até à conquista árabe islâmica em meados do séc. VII d.C.
Ora, a quase totalidade dos lugares da visita papal reenvia para o chão histórico da aventura humana avançada, que se desenvolveu na Mesopotâmia desde há mais de cinco mil anos. Também estes ficaram como conteúdo erguido e profundo em cada lugar da visita. Os três dias da visita espelham o horizonte de três regiões e três épocas clássicas da Mesopotâmia.
No horizonte da Babilónia

Relevo de um palácio assírio (713-706 a.C.) de Dur-Sharrukin, possivelmente representando Gilgamesh como Mestre dos Animais, escultura agora no Museu do Louvre. Foto Jastrow/Wikimedia Commons.
As deslocações da visita têm como plataforma estratégica a região central da Mesopotâmia, onde fica a capital atual perto do sítio onde se situava a cidade da Babilónia. Não sendo a mais antiga, esta cidade acabou por vir a representar toda a Mesopotâmia e a sua história comum. O efeito que teve sobre a memória bíblica é algo negativo, desde a ironia da torre de Babel (Génesis 11) até à memória da destruição de Jerusalém em 587 a.C. (Salmo 137), memória tão trágica que se funde com a de Roma (Apocalipse 17-18) que destruiu Jerusalém e o templo no ano 70 d.C.
O país dá atualmente pelo nome de Iraque, cuja origem pode remeter para o nome da cidade de Uruk, que na Bíblia se diz Erec, situada mais a sul, na Suméria, e que é vista como o berço mundial da escrita e da civilização com que vivemos. Ali, o herói Gilgamesh foi o rei celebrado numa epopeia que se difundiu por todo o antigo Oriente.
Bagdad é capital a partir do período islâmico. Desde há mais de um milénio, com efeito, o Iraque é um espaço de hegemonia muçulmana. A missa de sábado à tarde é na catedral católica S. José, nesta cidade.
No horizonte da Suméria

Ur, que a tradição considera como lugar de origem da família de Abraão, foi capital da terceira dinastia de Ur, o último império mesopotâmico na mão dos sumérios. Foto © José Manuel Rosendo.
Os lugares significativos do segundo dia da viagem remetem-nos para a região onde se acentua a memória dos sumérios. Najaf é a terceira cidade santa do Islão xiita. Ali se venera o túmulo-santuário de Ali, genro e primo de Maomé e segunda personagem na galeria do mundo islâmico, cujo nome preside à vertente espiritual do islão xiita, num país que tradicionalmente se tem assumido como sunita. Esta dualidade é fonte de densidade e de tensões, no Iraque e no próprio Islão. Ali se encontra um dos principais centros de estudo teológico xiita. O encontro do Papa é com o ayatollah Al-Sistani, que preside ao instituto Al-Khoei, o qual, com o estudo das diferentes religiões, se propõe educar para o diálogo entre elas.
Na região, existe um cemitério onde os piedosos judeus esperavam o juízo final, tal como acontece em Jerusalém, no vale de Josafat e por toda a encosta do Monte das Oliveiras. Ali existe igualmente o maior cemitério cristão do Iraque, anterior à fundação do próprio santuário muçulmano. Para túmulo de Ali, este lugar apresentava credenciais importantes, vindas da era pré-islâmica. Nas proximidades fica Kerala, outra cidade santa xiita com mesquita-túmulo dedicada os filhos de Ali.
Mais alargado e comunitário é o encontro deste segundo dia com os líderes religiosos do Iraque. Para este foi escolhida a antiga cidade suméria de Ur, que a tradição considera como lugar de origem da família de Abraão e que foi capital da terceira dinastia de Ur, o último império mesopotâmico na mão dos sumérios. Este encontro religioso acontece junto do grande zigurate de Ur, santuário associado ao deus Nana, representado pela lua, símbolo com que o Médio Oriente ainda hoje se identifica.
Este zigurate foi construído por volta de 2100 a.C. por Urnamu, fundador da terceira dinastia de Ur. O recinto forma um quadrilátero com cerca de mil metros de lado. Presentes estarão os adeptos das religiões que se inspiram na figura de Abraão: cristãos, mandeus, sabeus, yazidis, muçulmanos. A representação de judeus, provavelmente ausentes por razões políticas, ficará certamente implícita na presença dos grupos afins de origem judaico-cristã.
No horizonte da Assíria

A porta de Ishtar de Arbela, na Assíria, dava entrada no santuário da deusa que concentrava em feminino o imaginário religioso da Mesopotâmia. Foto: Direitos reservados.
O terceiro dia da visita decorrerá no norte do Iraque, que na antiguidade é conhecido pelo nome de Assíria. É a região iraquiana autónoma do Curdistão. Erbil, a que os gregos chamavam Arbela, é uma cidade conquistada na terceira dinastia de Ur e habitada desde o quinto milénio. O santuário da deusa Ishtar de Arbela era, na Assíria, a divindade que concentrava em feminino o imaginário religioso da Mesopotâmia em todas as suas épocas. Foi capital do reino de Adiabene, cuja realeza se converteu ao judaísmo no séc. I da nossa era, tendo a rainha Helena construído palácio e sepultura em Jerusalém, no tempo de Jesus. Na atualidade, coexiste ali um grande número de religiões, incluindo cristianismo e yazidismo. Na mesma região fica Edessa, importante centro espiritual nas origens do cristianismo. Ali terá sido escrito o Evangelho de Tomé.
Na planície alto-mesopotâmica, fica a última capital dos assírios, Nínive, emparceirando com a mais moderna cidade de Mossul, numa e noutra das margens do rio Tigre. Nínive, tão destacada na história profética sobre Jonas, foi a nova capital de Senaquerib e, com os seus 750 hectares, é o maior sítio arqueológico de todo o Oriente. Nela, a grande biblioteca de Assurbanipal serviu de modelo para a Biblioteca que Alexandre Magno sonhava para Alexandria. Esta região mostrou sempre uma grande mistura de religiões, incluindo várias modalidades de cristianismo (assírios, nestorianos, caldeus e mandeus).
A ocupação por parte do autodenominado Estado Islâmico (EI) e as lutas pelo fim do mesmo deixaram Mossul em completa ruína. Entretanto, a comunidade cristã da região que mais sofreu com o EI foi a de Qaraqosh, a cidade mais cristã do Iraque. A missa de Francisco na Igreja da Imaculada Conceição será certamente marcada pela densidade e intimidade destas memórias e pelo dramatismo das vivências mais recentes. É particularmente simbólico que o Papa lhes vá restituir, devidamente restaurado, o seu livro oficial de orações, o Sidra, que escapou à destruição nos ataques do Daesh.
Espírito e lema da viagem

O logotipo da viagem do Papa: Os lugares da viagem erguem memórias que abarcam desde o berço da civilização nas planícies do sul da Mesopotâmia e de toda a sua história até ao berço da expansão judaico-cristã.
Envolvendo a bandeira do Iraque encimada pela pomba da paz, como em auréola, o programa oficial da visita exibe o lema da viagem: Todos vós sois irmãos. Nos dois extremos está escrito em árabe e em curdo, duas línguas oficiais do Iraque, e no centro superior, com grafismo que a própria escrita naturalmente destaca, vem a língua do cristianismo oriental, o siríaco, na sua modalidade de escrita oriental ou mesopotâmica, chamada estranguelo ou nestoriano. Esta ocupa o centro, mesmo sem ser língua oficial. A fraternidade entre cristãos e muçulmanos é particularmente sublinhada pelo facto histórico de a escrita árabe ter sido adaptada a partir da escrita cristã siríaca, na sua versão ocidental mais linear, que os comerciantes proto-árabes se tinham habituado a usar nas suas viagens e foi assumida para o árabe corânico.
Os lugares desta viagem erguem, portanto, memórias que abarcam desde o berço da civilização nas planícies do sul da Mesopotâmia e de toda a sua história até ao berço da expansão judaico-cristã, nos vales e montanhas entre a Assíria e a vizinha Arménia. Foi nesta última que, segundo a literatura bíblica, a arca de Noé, no fim de um terrível cataclismo, encontrou finalmente chão firme para assentar e acolheu o regresso de uma pomba que trazia no bico um ramo de oliveira, sinal de que a catástrofe chegara ao fim (Génesis 8,12). O símbolo da paz nasceu ali.
A viagem de Abraão começou dali e era de saída e origem como aprofundamento de identidade; a viagem do Papa Francisco para ali é de regresso, reencontro e reafirmação de fraternidade, em cumprimento da sua carta encíclica recente, Fratelli tutti.
José Augusto Ramos é professor de História Oriental e Bíblica, da Universidade de Lisboa