
“O maior dos meus problemas, quanto aos livros, é que já não terei tempo para ler aqueles que tenho mesmo de ler, razão pela qual os compro.” Foto © José Alves Jana.
… são para mim motivo de cuidados. Por razões de espaço e, como diz a minha mulher, por estar a criar problemas aos meus filhos: que farão, depois, dos meus livros? O que quiserem, é claro. Já tive de dar, com gosto e desgosto, muitos deles. Mas o maior dos meus problemas, quanto aos livros, é que já não terei tempo para ler aqueles que tenho mesmo de ler, razão pela qual os compro.
Ao contrário de Maria Luísa Ribeiro Ferreira (ver texto no 7MARGENS), eu sublinho e anoto os meus livros. Repito: os meus, não – nunca – os de outros, por exemplo os que trago de alguma biblioteca. Os meus livros são, para mim, instrumentos de trabalho, ferramentas que me abrem os mundos do pensamento e da realidade em que habitamos. Sublinhar um livro tem, para mim, duas grandes vantagens: fica mais fácil encontrar o que nele procuro e, para sublinhar, tenho de voltar ao que acabo de ler para organizar o texto e assim faço um primeiro trabalho sobre o que me é dado a pensar. Além disso, sei que o emprego da mão mobiliza outros centros cerebrais e talvez me envolva mais fundo no processo de leitura.
“Mas assim, sublinhado, o livro tem menos valor”, dizem-me. Menos valor de mercado, mas eu não quero vendê-lo. Tem, porém, mais valor para mim. E, por vezes, mais valor para alguém a quem o empreste: “Leio o livro e a tua leitura do livro”, disse-me uma vez um amigo.
Um livro sublinhado está pronto a ser usado com maior rapidez.
Dentro de um livro, guardo por vezes o respectivo marcador, que agora tantas vezes traz, alguma crítica que cortei de um jornal ou uma entrevista ao autor, talvez algum papel com notas minhas da leitura. Um livro lido é um tesouro a que se pode voltar com proveito.
Foi ao olhar para a minha biblioteca que tive uma das mais nítidas experiências da minha mortalidade: “Já não consigo lê-los todos”, percebi. Ou seja, vou morrer antes de cumprir a tarefa que a biblioteca me apresenta. Mas também é verdade que um livro não é adquirido apenas para o ler. Comprá-lo significa, na livraria, tomar uma posição, afirmar alguns valores intelectuais, expressar um compromisso, de o ler, de aprofundar algum problema, dizer a mim mesmo que é por ali o caminho. E, já na minha estante, continua a desafiar-me, a lembrar-me que é importante, mesmo quando está já fora das prioridades imediatas.
Já comprei muitos livros por solidariedade: para ajudar um mercado específico. Quando fiz a minha licenciatura, quase não havia livros de filosofia em português. Comprar uma obra que acabava de ser editada era também viabilizar esse segmento de mercado. Hoje, felizmente, seria impensável manter esse compromisso. Também comprei livros como contributo por uma causa social, mas essas leituras eram para mim menos urgentes que o acto de comprar.
Um bom leitor consegue ler, durante uma vida, cerca de três mil livros: um livro por semana durante 60 anos. Também a minha biblioteca tem muito mais que esse limite. Há algo de irracional em comprar muito para lá do leitor possível que uma pessoa é. Mas quem disse que a relação com os livros tem de ater-se ao limitado campo da racionalidade?
A primeira “biblioteca” que tive era apenas três tábuas sobre alguns tijolos e os livros que então possuía. Foi crescendo e hoje, com os da minha mulher, é bastante mais significativa. De certo modo, é também uma obra nossa, um feito, um testemunho para nós mesmos, um retrato físico de lugares por onde andámos, um álbum de fotografias intelectuais. Talvez por isso me seja tão difícil desfazer-me de um livro lido. Ou mesmo emprestá-lo, sob risco de ele não voltar, como tantas vezes aconteceu. A biblioteca foi crescendo, disse, mas agora precisa de ir diminuindo.
Houve um tempo em que os meus livros estiveram à disposição dos meus alunos, pois a escola (do ensino superior) onde leccionava não dispunha duma biblioteca à altura das necessidades.
Esse é outro problema meu: sei que os meus livros poderiam ter melhor utilização que a que eu e só eu lhes dou. Mas não vejo solução para isso. Aliás, agora as bibliotecas já nem dados os querem. Mesmo assim, ainda há pouco fiz uma significa oferta de um bom lote de livros àquela escola onde leccionei, cuja biblioteca ainda continua pobre… mas a verdade é que já não sei se os alunos ainda lêem livros ou se… cala-te boca.
Ler uma edição em papel ou mesmo ter um livro em papel ao lado de outros na biblioteca é também ser um certo tipo de pessoa, de leitor, de trabalhador intelectual. Não sei como será amanhã, nem estou muito preocupado com isso, mas sei que há, já hoje, pessoas decerto muito melhores que eu que têm com os livros em papel uma relação residual, minoritária. E não vejo nisso um problema substancial. Só que eu não sou assim. Por isso não tenho qualquer assinatura digital de jornal ou revista e mesmo das edições que apenas existem em formato digital não sou lá grande amigo. Sim, sou velho, e com todo o gosto. Já fui novo, como o são os nativos digitais de hoje.
Mas não vejo sinais de que “hoje se lê cada vez menos”. Há aí um problema de percepção. Comparamos por exemplo os alunos de hoje, com uma composição social muito diferente dos do nosso tempo, comparamo-los, dizia, não com os jovens alunos do nosso tempo, mas connosco, que éramos pouco representativos, no bom sentido, dos hábitos de leitura de então. Basta olhar para o rio de livros que hoje se editam e são lidos. Basta ver como tantos jovens de hoje são grandes leitores, apesar de tantas outras solicitações, ao contrário do “nosso” tempo. Não, a leitura não está a morrer. Nem sequer a leitura de livros em papel. Já não tenho a mesma certeza quanto a certo tipo de estudantes, que se alimentam mais da internet que de edições em papel.
Há ainda um outro tema, dar a ler, mas isso é já outra conversa.
E agora, o melhor é terminar, pois há um livro que me espera.
José Alves Jana é doutorado em filosofia, professor aposentado, voluntário e dirigente associativo. Contacto: jalvesjana@gmail.com