
Cartaz a recordar as vítimas de abusos sexuais do clero na Igreja em Portugal. Foto: Direitos reservados
1. A análise sociológica dirá que a JMJ se esgota em si mesma. É uma verdade inequívoca, pela debilidade intrínseca ao modelo de festa e pela preparação pastoral pobre (faltou-lhe quase sempre a densidade da meditação sobre o mundo, a espiritualidade encarnada, os temas críticos como a guerra e a paz, a pobreza e a exclusão, a conversão ecológica ou a aceitação da diversidade, seja a de género ou a ideológica).
Mas entretanto, há uma imensa alegria no ar, formidável, magnífica, contagiante, extremamente comovente pela esperança que transporta, algo ingénua mas tão-tão real que mobiliza a cidade e os cidadãos. Acredito que mau grado as referidas debilidades, algumas sementes há, e flores haverão. Como prescindir da esperança?
A estes jovens nada nem ninguém tirará a alegria do encontro e de algumas descobertas, nem aos católicos em geral mesmo quando defrontam o frenesim anti-religioso, jacobino ou outro, que se tem sentido em muitos sectores da sociedade.
2. Cedo Francisco se encarrega de colocar os pontos nos ii. Vem de branco e senta-se modestamente ao lado do condutor do seu carro eléctrico.
Depois, todas as suas intervenções durante o dia, mesmo se embrulhadas em metáforas ou alegorias, são claras, contundentes e carregadas de intencionalidade, na linha dos ensinamentos das suas encíclicas e documentos. Francisco é dócil na assertividade e assertivo na docilidade. Só por isso já seria um Papa magnífico. À saída do CCB, um político profissional mostra o seu amadorismo ao dizer-se surpreendido pelo carácter tão intensamente político do discurso do Papa.
3. Agora o tema horrível dos abusos sexuais, aquela nuvem escura que insiste em não se mover de cima das nossas cabeças.
O Papa foi claro: é um escândalo que exige “uma humilde e constante purificação, partindo do grito de sofrimento das vítimas, que se devem sempre acolher e escutar” (como ser mais claro?). Francisco fez o que a generalidade dos bispos portugueses ainda não fez, no gesto e no tom.
Valorizo o facto de Francisco ter abordado o tema logo no primeiro dia da JMJ e realço, sobretudo, um comportamento: ter reunido com vítimas. São inequívocos sinais da prioridade em tratar o assunto seriamente, o que deveria interpelar todos os crentes e, à cabeça, os bispos responsáveis em cada diocese portuguesa.
4. Infelizmente, por oposição, neste tema não se vê, nem se sente, um verdadeiro compromisso dos responsáveis da Igreja em Portugal.
Depois de anos de denegação da realidade, e de meses de horrível, profunda e deplorável desorientação moral e ética, a hierarquia parece ter encontrado uma estratégia para lidar com o problema, assente em quatro pilares:
a. a adopção de uma narrativa formalmente correcta, mesmo inatacável (táctica de imagem) mas aparentemente despojada de comoção, indignação, empatia com as vítimas, e de compromisso real com as mudanças estruturais, nomeadamente as que se referem à alteração de modelos de organização e de poder internos, incluindo o encerramento dos seminários. As declarações conhecidas, mesmo no contexto de homílias, mais parecem a leitura de comunicados por funcionários à porta de um serviço do que o compromisso de pastores empenhados;
b. criação do grupo Vita ao qual, no fundo, foi atribuída a missão de gerir o problema em nome da Igreja (táctica de delegação de responsabilidades); o seu modelo ambíguo e funções algo imprecisas está muito longe do proposto pela CI – Comissão Independente (embora houvesse a promessa de seguir todas as suas recomendações); saliente-se que com esta opção tomada se evitou frontalmente dar continuidade ao estudo dos contornos e dimensão do fenómeno criminal dos abusos sexuais na Igreja (os arquivos mal foram visitados);
c. paralelamente, apoio formal aos leigos que se têm mostrado preocupados com a falta de soluções (táctica de diluição), o que não pode deixar de ser positivo, mas parece ser o desdobramento da táctica anterior;
d. inexistência de responsabilidade dos bispos, já que nenhum se retirou ou foi retirado, algo que se afigura implausível dada a idade da maioria.
Voluntariamente ou não, esta estratégia funciona, sendo uma barreira erigida entre a hierarquia e as exigências da sociedade e de grupos de católicos empenhados. Ela acaba por se constituir como uma efectiva blindagem à discussão e à plena aceitação do crime enquanto fenómeno sistémico, impedindo que se retirem ilações e assunção de responsabilidades.
Não é fácil enfrentar esta estratégia que aposta na diluição de memórias e responsabilidades, como se tudo fosse um pesadelo agora em vias de ser finalmente encerrado, processando administrativamente meia dúzia de dados apurados.
5. À saída da oração das vésperas no Mosteiro dos Jerónimos, bispos engalanados foram ouvidos sobre o tema dos abusos. Dois que tinham mostrado outrora alguma sensatez, descambaram e um refere, solene, que não se pode andar a acusar pessoas sem mais nem menos, afinal estamos num Estado de direito e numa Igreja de direito. Pois mesmo depois de tudo o que se tem passado, continuam a não perceber nada da realidade e do que está em causa, nada! Tivessem observado e ouvido o Papa e teriam entendido que não é o direito que está em causa mas a moral e a fidelidade ao Evangelho e o que isso implica: atenção, escuta, cuidado com os fracos e mudança. Confirmo a minha convicção mais profunda: não será com este episcopado que assistiremos a mudanças, por mais intensos e ricos que sejam os processos sinodais. Há uma cúpula medrosa contaminada não apenas pelo clericalismo mas também pela infidelidade e ignorância teológica.
6. No topo do bolo, a cereja veio do poder autárquico, essa imensa reserva nacional de disfuncionalidade e de dislates de todas as espécies. A autarquia de Oeiras mandou cobrir um cartaz que denunciava (correcção: relembrava) a existência de 4.800 casos de abusos sexuais apurados pela CI. Na sua óbvia mensagem, o painel até era neutro, no sentido em que não era prosélito ou excessivo, sendo esteticamente colado a imagens que a CI tinha usado na apresentação do relatório em 2022.
A legalidade do acto é nenhuma, como se apurará, pois não se tratava de publicidade (a que sabonete, a que margarina?); foi um acto rancoroso e inoportuno que diz muito sobre os seus autores.