
O Papa Pio XII em San Lorenzo (Roma), depois do bombardeamento da zona pela aviação aliada, em 1943: um dos episódios que traduz opções e críticas. Foto: Direitos reservados
Os silêncios do Papa Pio XII durante a Segunda Guerra Mundial “foram uma escolha”. E não apenas no que se refere ao extermínio dos judeus: “Ele também não teve discursos críticos sobre a Polónia”, um “país católico que estava a ser dividido pelos alemães, exactamente por estar convencido de que uma tomada de posição pública teria aniquilado a Santa Sé”. A afirmação é do historiador Andrea Riccardi, e surge no contexto da reportagem A Lista do Padre Carreira, que será exibida nesta quarta-feira, 31 de Maio, no Jornal Nacional da TVI, numa parceria entre aquela estação televisiva e o 7MARGENS, com o jornalista Joaquim Franco como co-autor, e na qual serão revelados documentos inéditos.
A reportagem aborda a história de Joaquim Carreira, nascido em 1908 na Caranguejeira (Leiria) que, em 1940, depois de se ter tornado o primeiro padre português a tirar o brevet de piloto, foi nomeado reitor do Pontifício Colégio Português, de Roma, a casa onde ficam alojados os padres portugueses que estudam na capital italiana.
Em Setembro de 1943, quando os Aliados começaram a contra-ofensiva de invasão de Itália, os nazis ocuparam Roma, e muitas pessoas sentiram necessidade de se esconder. Foi nesse contexto que o padre Carreira deu refúgio e abrigo a meia centena de perseguidos, antifascistas, judeus e outros resistentes à ocupação nazi-fascista da capital italiana. Na reportagem, o último refugiado ainda vivo, Luigi Priolo, regressa, 79 anos depois, ao edifício que o acolheu, o Palácio Alberini, do século XVI, que hoje acolhe os escritórios de uma multinacional da moda.
A concessão de hospitalidade e de asilo do padre Carreira a meia centena de refugiados – e o facto de ter levado mais centena e meia de mulheres e crianças para outras casas religiosas – coincidiu com aquela que “foi uma das escolhas” de Pio XII”, como define Riccardi na entrevista concedida em Roma, em Novembro último, para a realização da reportagem.
Não se sabe que grau de conhecimento teria tido o Vaticano – e eventualmente o Papa – sobre o que o padre português decidira. Certo é que, no final do ano lectivo que coincidiu com a ocupação de Roma, Joaquim Carreira enviou o seu relatório também para a Congregação dos Seminários e Estudos Universitários, da Santa Sé. Em 12 de Agosto, respondendo ao envio do documento, onde o padre Carreira recenseava os nomes dos refugiados a quem tinha dado abrigo, um responsável daquele organismo diz: “Congratulamo-nos com V.Exª pelo bem que pôde cumprir em circunstâncias excepcionais.”
Escondidos num alçapão

Elio Cittone, então um jovem de 16 anos, foi um dos judeus acolhidos no Colégio Português, com o pai e o tio, por Joaquim Carreira. “Ele contou-me que os alemães tinham ido procurá-los e o padre [Carreira] escondeu-os num alçapão. Um medo terrível, porque eles entraram, procuraram”, conta a sobrinha de Elio, Renata Ergas, que mora em Milão… “Depois disseram-lhe que já não era prudente ficar ali.” Foi o testemunho de Cittone, que morreu em 2017, que permitiu ao Yad Vashem declarar o padre português como “Justo Entre as Nações”. Ou seja, alguém que ajudou judeus a escapar dos nazis, arriscando a própria vida e sem esperar nada em troca.
Essa não foi a sorte de mais de mil judeus de Roma: em 16 de Outubro de 1943, mês e meio depois do início da ocupação da capital italiana, os nazis fizeram “uma razia aos judeus romanos: mais de mil foram deportados para Auschwitz”, recorda Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio e ex-ministro da Cooperação Internacional. “O Papa interveio por vias diplomáticas, mas não protestou.” Ao invés, o apoio católico aos perseguidos “multiplicou-se”. Riccardi dá o exemplo da própria Igreja de Santo Egídio, um antigo mosteiro carmelita onde também “estiveram escondidos alguns judeus”. Conventos, mosteiros e outros edifícios serviram de abrigo para milhares de pessoas – segundo os cálculos da historiadora e freira Grazia Loparco, há registos de cerca de 4000 pessoas acolhidas em 200 casas religiosas.
Entre 1975 e 1979, Riccardi também estudou especificamente esse tema, tendo publicado o livro Roma città sacra? (“Roma cidade sagrada?”) Recorda os muitos religiosos com quem falou e que tinham vivido episódios desses. “Mas a estes 4000 judeus é preciso juntar outros que foram acolhidos por famílias”, que por sua vez se integravam na rede da paróquia, para poder alimentar os refugiados.
No Centro de Documentação Hebraica Contemporânea (CDEC, na sigla italiana), de Milão, um dos mais importantes do mundo, guardam-se milhares de documentos relativos aos judeus deportados, e também às pessoas que ajudaram outros a esconder-se. O Livro da Memória. Os Judeus Deportados de Itália (1943-1945), publicado há seis anos pela directora do arquivo do CDEC, Liliana Picciotto, regista histórias de vítimas e de pessoas que ajudaram judeus. Entre eles, também pessoas religiosas, nota Laura Brazzo, a vice-directora do arquivo.
“Ninguém se interessava pelos judeus”

Silvia Haia Antonucci, responsável do Arquivo da Sinagoga de Roma, tem uma perspectiva diferente de Riccardi: admitindo que num caso como esse se estava perante “escolhas dificílimas” e que não “era fácil ir contra Hitler”, compara diferentes atitudes de Pio XII: quando o bairro de San Lorenzo foi bombardeado pela aviação aliada, em 19 de Julho de 1943, o Papa dirigiu-se à zona para manifestar a sua solidariedade com as vítimas e os sobreviventes. Quando, três meses depois, os judeus foram levados, teve “uma simples e pequena iniciativa diplomática”, critica a historiadora.
Antonucci acrescenta: “Não tem comparação. Não é necessário extremar, ninguém diz que o Papa não fez nada ou que fez tudo. A verdade é que se quiséssemos encontrar um interesse humano nos judeus… não havia em ninguém, não havia no Papa, não havia em Churchill, não havia em nenhum lugar.”
No jogo político-diplomático, Andrea Riccardi sublinha: “Temos de pensar no que era o Vaticano daquela época: uma pequena realidade isolada, primeiro num país fascista e, depois, numa Roma ocupada pelos nazis. Pio XII viveu isto tragicamente. Tinha a noção do que os nazis teriam feito à Igreja em caso de vitória. Sabia que não haveria espaço para a Igreja numa Europa nazi. E ao mesmo tempo sabia que no mundo comunista não haveria espaço para a Igreja, já havia grandes perseguições.”
A preocupação do Papa era “a da imparcialidade, tentando favorecer uma certa paz”. Pio XII e o Vaticano sabiam “da perseguição” e, depois, “do extermínio” dos judeus, mas Pacelli optava pela ajuda aos perseguidos em Roma – judeus, partisans, jovens.
Podemos dizer que os conventos e casas religiosas acolheram espontaneamente os refugiados ou fizeram-no por ordem do Papa? “É óbvio que, sem o consentimento do Papa, um mosteiro de clausura não teria podido acolher refugiados ou perseguidos. Houve um consentimento do Papa, mas houve também uma iniciativa de base, sobretudo porque o risco era muito grande para os superiores: a condenação à morte, o fuzilamento.”
“Atraso da abertura dos arquivos prejudicou”

Em síntese, Andrea Riccardi, que escreveu também uma biografia de Pio XII, diz que não defende o Papa Pacelli, mas que os seus silêncios “têm explicação, percebem-se e compensam-se com o compromisso humanitário”. Mas admite: “O que mais me abalou – falo disso no meu último livro La Guerra del Silenzio – foi o silêncio depois da guerra. Porque Pio XII não falou da Shoah depois da guerra? Da tragédia dos judeus? Esta é uma dúvida muito importante. Porque não falou contra o antissemitismo? Há um silêncio de Pio XII depois da guerra.”
Para estas perguntas, Riccardi tem algumas explicações: no Leste europeu, havia a sensação de que os judeus se tinham coligado aos comunistas em vários países. E no Médio Oriente, nascia um novo conflito com a independência de Israel a empurrar os palestinianos – incluindo cristãos – para a Cisjordânia e Faixa de Gaza.
Ambos os historiadores, Riccardi e Antonucci, estão convencidos que a abertura do arquivo de Pio XII, decidida pelo Papa Francisco, pode ser positiva. “O atraso da abertura dos arquivos vaticanos prejudicou o conhecimento da realidade”, diz Riccardi. Mas não se devem alimentar falsas expectativas de encontrar “provas cabais” de uma coisa ou outra, antes se perceberão as peças “de uma história que com paciência vamos ter de reconstruir”.
“De certeza que vai servir para alguma coisa”, diz a responsável do arquivo da Sinagoga. “Na minha opinião, o problema é o extremar da questão. Não se pode dizer nem que o Papa abriu todos os conventos, porque não é verdade, nem que disse: ‘não abram’. A verdade está no meio. O facto de o Papa não ter dito para não abrir os conventos é um facto considerável. Mas daqui a querer fazer passar o Papa como o paladino que salvou todos… não é verdade.”
“A verdade incontestável”, conclui Silvia Haia Antonucci, “é que durante a Segunda Guerra Mundial ninguém queria saber dos judeus.” E acrescenta: “Esta é a realidade que pode incomodar, mas o historiador tem de estudar a história por aquilo que é.”
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