
“Precisamos da coragem para defender a vida, para recuperar o alento algures perdido, para vivermos de forma proporcionada e justa ao momento presente.” Foto © Arifur Rahman | Unsplash
Este texto está a ser escrito no fim de 2021. Em tempo de balanços as notícias avolumam-se; os desejos partilham-se; os receios escondem-se; as desesperanças ocultam-se também; as esperanças manifestam-se; as gratidões experimentam-se sem que, às vezes, se exprimam;… Enfim há lugar para esta diversidade de sentir e muito mais.
Atravessamos um momento invulgarmente comum. Talvez nunca tenhamos tido tanto a ver uns com os outros como hoje em dia. Porque quase todos ficamos em casa em circunstâncias que, anteriormente, nos levavam a sair aos mais diversos lugares; porque quase todos andamos de rosto tapado quando antes o tínhamos a descoberto; porque quase todos refletimos com o que julgamos ser o nosso bom senso, ao qual, anteriormente, éramos mais indiferentes; porque temos uma fragilidade comum, quando, anteriormente, alguns eram mais fortes; porque quase todos temos medo, quando, anteriormente, havia mais valentões; porque perdemos o controlo do que se passa no nosso mundo quando já imaginávamos que até o podíamos desperdiçar e reinventar em seguida.
Estava eu a escrever este texto com a televisão ligada, o que é raríssimo, e, de repente, ouvi esta frase da boca do infecciologista António Sarmento: “A pandemia despertou a consciência do bem comum contra o individualismo feroz.”
Na verdade, às vezes, é assustadora a memória ténue que o ser humano revela ter para a dor. Enquanto está no “olho do furacão” e é surpreendido de forma nefasta, sem prévio aviso, reage protegendo-se e protegendo, como se a grande lição estivesse a ser aprendida perenemente. Mas, basta que passe algum tempo, que se familiarize com a ameaça, que ganhe com ela alguma intimidade, para funcionar como se nada tivesse aprendido.
Não é o que esperamos de 2022. Já trazemos uma bagagem de quase dois anos de avanços e recuos e daí a dupla esperança: que algo melhor nos aconteça no que à pandemia diz respeito; que tenhamos aprendido o que, de agora em diante, se torne útil a todas as circunstâncias mundiais, mesmo as endémicas e as pós-pandémicas.
A intoxicação por notícias tem destruído o nosso bem-estar psicológico. Até nisto é preciso contenção. Parecemos monotemáticos e pouco imaginativos. Todo o mundo opina, todo o mundo alvitra, todo o mundo tem certezas hoje, que, amanhã, se tornam dúvidas.
As decisões estão permanentemente a mudar em função de mais uma investigação incompleta, mas dada como segura. Transformámo-nos em cataventos humanos que, querendo saber imenso, não sabemos quase nada. Mas sim, como nunca, temos de cuidar das opiniões que damos. Elas têm impacto em outros já vulnerabilizados pelos medos circunstanciais e podem destruir-lhes a tranquilidade. Não é por acaso que as perturbações de ansiedade, a par de outras, se vêm agravando de forma quase descontrolada em todas as faixas etárias, incluindo as mais novas. Não há qualquer dúvida que estamos também na pandemia do E se…
E se não consigo? E se apanho o vírus? E se perco os amigos? E se não tenho tempo de viver o que quero e como quero? E se desperdiço oportunidades que não voltam mais? E se…
Não. Isto não é caminho, mas a pedagogia da ameaça ansiogénea. Temos de ser sábios. Encontrar a melhor versão de nós em cada dia que passa, estejamos onde estivermos, com quem estivermos, a fazer o que tiver de ser feito. É hoje que a vida acontece. Ontem foi a nossa história e amanhã é a nossa incógnita, que deve ser esperançosa e não perturbadora.
Cuidar uns dos outros, não sendo ter medo, é, nestes tempos, ser prudente; criar condições para que nos possamos proteger mutuamente; distinguir o possível do desejável e assim atuar com expectativas realistas para evitarmos as frustrações que decorram do desfasamento entre estas e a realidade.
É indubitável o poder do otimismo. Ninguém o nega. Contudo, ele não pode ser irrealista, patético ou demagógico.
Todos queremos viver melhor, retomar a vida onde a deixámos, agarrar o mundo onde acreditávamos que ele se encontrava. Mas, antes de tudo isto, precisamos da coragem para defender a vida, para recuperar o alento algures perdido, para vivermos de forma proporcionada e justa ao momento presente.
Não façamos promessas que não podemos cumprir; não criemos crenças impossíveis de concretizar; não inventemos nada mais do que aquilo que já foi investigado. Sejamos somente sérios e prudentes em cada dia que passa, na relação que estabelecemos com os outros e connosco mesmos e na responsabilização pelas consequências de tudo o que sai das nossas mãos e das nossas bocas para o grande ou apenas pequeno mundo que conseguimos alcançar.
Margarida Cordo é psicóloga clínica, psicoterapeuta e autora de vários livros sobre psicologia e psicoterapia.