
O arcebispo de Bangui, cardeal Dieudonné Nzapalainga, encerrou o primeiro dia dos III Mafra Dialogues. Foto © Câmara Municipal de Mafra.
Se queremos paz na Ucrânia, é preciso redirecionar as energias, que têm estado focadas apenas num eixo, o do armamento. Quem o diz é o arcebispo de Bangui, Dieudonné Nzapalainga, que tem desempenhado um papel crucial na recuperação da paz no seu próprio país, a República Centro-Africana (RCA). “Ouvimos demasiado a voz das armas, mas também há a voz do diálogo para a paz”, afirmou o cardeal durante a sua participação na terceira edição do Mafra Dialogues, que decorreu esta quinta e sexta-feira, 27 e 28 de abril, no Palácio Nacional de Mafra, subordinado ao tema “Diálogo Inter-religioso e Paz Global”.
Esse diálogo, sublinhou o cardeal Nzapalainga, deve ser visto como “uma técnica de resolução de conflitos que não se foca no resultado final, mas na transformação que ocorre durante o diálogo”. Assim, acrescentou, “durante uma sessão de diálogo, em vez de nos focarmos em questões materiais, o foco deve estar nas emoções. É apenas porque se concentra na esfera emocional que o diálogo transforma as pessoas”, defendeu.
O arcebispo de Bangui deu depois alguns exemplos práticos de como as “emoções tiveram um papel fundamental” na resolução de crises no seu país. Um deles aconteceu em 2017, na cidade de Bangassou, a 750 km da capital Bangui. Ali, “os antiballakas, que são milícias que se dizem cristãs, preparavam-se para atacar o seminário menor da cidade, onde os muçulmanos se refugiavam”, contou o cardeal.
“Estávamos em missão na cidade, acompanhados por Clarice Manehou, presidente da coordenação feminina da plataforma das denominações religiosas da República Centro-Africana. Durante uma semana, dialogámos com os líderes dos antiballakas para dissuadi-los do seu projeto. Ao oitavo dia, esta mulher veio ajoelhar-se diante do líder dos antiballakas para dizer-lhe em lágrimas que era uma mulher, mas acima de tudo uma mãe e que todos eles tinham nascido de uma mulher e que ela era como a mãe deles. E exortou-os a interromper esse projeto desastroso”, recordou Dieudonné Nzapalainga, para logo a seguir concluir a sua partilha: “após alguns momentos de silêncio, a emoção tomou conta. O líder foi junto da mulher e disse-lhe: ‘Mamã, ouvimos o seu recado’. No dia seguinte, eles não apenas desistiram do seu plano, mas também depuseram as armas. Isso possibilitou o regresso dos muçulmanos à cidade”.
O cardeal Nzapalainga, que é um dos líderes da Plataforma Inter-religiosa da RCA, juntamente com o líder da Comunidade Islâmica e o presidente da Aliança Evangélica do país, considera que experiências como esta podem ser transpostas para a realidade europeia. “Porque é que não conseguimos unir a sociedade civil russa e ucraniana, em que muitas pessoas são contra a guerra? Porque não mostramos na TV exemplos dessas pessoas unidas, como famílias russas e ucranianas a rezar em conjunto?”, sugeriu. “Há pessoas que estão inativas e que podem dar o seu contributo” para este diálogo, reiterou no seu discurso o também perito do Centro Internacional Rei Abdullah bin Abdulaziz para o Diálogo Inter-religioso e Intercultural (KAICIID, da sigla em inglês), com sede em Lisboa.
“A paz está também nas mãos de cada um de nós”, defendeu Gallagher

A posição do arcebispo de Bangui, que com o seu muito aplaudido discurso encerrou o primeiro dia do III Mafra Dialogues, foi corroborada por Paul Gallagher, secretário para as Relações com os Estados da Santa Sé, que numa mensagem em vídeo abriu os trabalhos do segundo dia do encontro promovido pelo Instituto para a Promoção da América Latina e Caraíbas (IPDAL).
“A paz é algo mais desejado do que procurado, – afirmou no seu discurso – e esta é uma das razões pelas quais o Papa acredita que se está a viver uma terceira Guerra Mundial”, com 27 conflitos em curso em todo o mundo e com os níveis de violência a aumentar.
O chefe da diplomacia do Vaticano lançou então um apelo: “Temos de fazer mais. A paz precisa de especialistas, mas está também nas mãos de cada um de nós”, defendeu, considerando que essa paz “não se baseia na dissuasão das armas”, mas exige um trabalho ao nível da educação. “Esperar que um conflito comece para procurar a paz é recorrer a remédios quando surge uma emergência”, afirmou, sublinhando que “a paz deve ser procurada dia a dia”, fazendo de cada pessoa “um arauto da paz” e construindo “uma ordem segundo a justiça e a caridade”.
Quanto às religiões, destacou, “devem estar na linha da frente da promoção da paz”. Até porque, na sua perspectiva, “é inegável que a humanidade precisa da religião para alcançar uma paz duradoura, pois a religião é uma bússola que nos orienta para o bem e nos afasta do mal”.
“As religiões ajudam a discernir o bem e a po-lo em prática”, referiu o secretário para as Relações com os Estados da Santa Sé, e se isso não acontece é porque são muitas vezes “instrumentalizadas”, o que “nunca deveria acontecer”. E é por isso que o terrorismo, associado à acumulação de interpretações incorretas dos textos religiosos”, é “deplorável”, afirmou.
Assim, concluiu, é muito importante que os líderes religiosos sejam “verdadeiros homens de diálogo”, atuando como “mediadores”. E o que é um mediador? “Aquele que não retém nada para si, mas que se gasta generosamente até se consumir, sabendo que o único ganho é a paz”.
Francisco como exemplo

O Papa Francisco é o melhor exemplo desse tipo de mediador, avançou o rabino Daniel Goldman, co-presidente do Instituto de Diálogo Inter-religioso da Argentina (IDI), que se juntou ao evento através de videoconferência. Goldman disse ter conhecido o então cardeal Jorge Bergoglio quando este era arcebispo de Buenos Aires e partilhou como foi importante que, com o seu impulso, tivesse sido criado o organismo ao qual preside atualmente.
“Bergoglio organizou a primeira visita de um arcebispo católico ao centro islâmico de Buenos Aires” e foi na sequência dessa visita, na qual Goldmann também participou, que o diálogo inter-religioso assumiu um papel mais relevante na Argentina. “Ele depois transportou isso para o nível internacional” e “é esse o caminho”, defendeu o rabino.
Também o arcebispo de Bangui havia referido o Papa no seu discurso como um exemplo a seguir. “Desde 2013, o Papa Francisco enfatiza o diálogo e a cooperação inter-religiosa como forma de promover a paz e a harmonia entre as diferentes comunidades religiosas. Em particular, trabalhou para construir pontes entre a Igreja Católica e o Islão, reconhecendo a importância dessa relação no atual contexto global”, assinalou.
O cardeal Dieudonné Nzapalainga recordou que, em 2014, Francisco organizou uma reunião de oração no Vaticano com o presidente israelita Shimon Peres e o presidente da Autoridade Palestiniana, Mahmoud Abbas, com o objetivo de promover a paz no Médio Oriente e que essa reunião incluiu orações de líderes judeus, muçulmanos e cristãos, tendo sido vista “como um símbolo de esperança e unidade”.
“Em 2019, – assinalou também – fez uma visita histórica aos Emirados Árabes Unidos, onde conheceu o Grande Imã de Al-Azhar, xeque Ahmed el-Tayeb, uma das figuras mais importantes do Islão sunita”. Foi durante esta visita que ambos assinaram o “Documento sobre a Fraternidade Humana para a Paz Mundial e Coexistência Comum”, que apelava precisamente a uma maior cooperação e compreensão inter-religiosa.
A chave está, pois, em fazer como Francisco: “reconhecer o outro como dom de Deus” e identificar os nossos “denominadores comuns” – concluiu o rabino Daniel Goldman. Estas são as tarefas “indispensáveis para alcançar a paz”.