In Memoriam

Padre Armindo Garcia: “tinha um ar juvenil, surpreendentemente jovem, que, de resto, conservou durante toda a vida.” Foto © Patriarcado de Lisboa.
Éramos ainda adolescentes e ele era o nosso ídolo. Tinha pouco mais de dez anos do que nós. Uma diferença que o tornava suficientemente respeitável, mas igualmente próximo, muito próximo. E tinha um ar juvenil, surpreendentemente jovem, que, de resto, conservou durante toda a vida. Nunca tínhamos visto um padre tão novo, nunca tínhamos tido um professor de Religião e Moral tão jovem. Tinha um Honda 600, preto (creio) onde, apertadas, não cabiam mais de quatro pessoas. Chegámos a andar nele sete ou oito. Chamava-se Armindo Marques Garcia, morreu nesta sexta-feira, dia 26 de fevereiro, a duas semanas de fazer 80 anos. Teve inúmeras e diversas responsabilidades na Igreja diocesana de Lisboa, de que era cónego. Deixou imensos amigos, ajudou muitos a encontrar um sentido para a sua vida e… mudou a minha. Marcou toda uma geração que se movia entre as Avenidas Novas, a Avenida de Roma e o bairro de Alvalade, antes e depois do 25 de Abril. Ficámos para sempre seus amigos.
Chegou ao Liceu Padre António Vieira na segunda metade dos anos sessenta e à paróquia de São João de Brito logo a seguir. Vinha da famosa “equipa da Martens Ferrão”, onde pontificava o padre Alberto Neto e vivia também, entre outros, o padre António Janela. Foi ali que organizámos parte da intervenção no socorro às vítimas das cheias de 1967, iniciativa que marcou uma geração estudantil. Na Igreja de São João de Brito foi acolhido – e mais do que isso, acompanhado e estimulado – por um opositor do regime Salazarista, monsenhor Adriano Botelho [exilado para a Patagónia entre 1960 e 1963]. Alberto Neto e Adriano Botelho foram as duas figuras tutelares dos primeiros anos de sacerdócio do padre Armindo. Mas o que ele era e seria, já o tinha com ele desde sempre.
Graças ao seu jeito planeámos e concretizámos excursões, campos de férias, intervenções no liceu, reuniões, conversas, participámos na criação da associação de encarregados de educação do liceu e por aí fora… tudo, ou quase tudo, tendo por base a equipa da JEC (Juventude Estudantil Católica) de que ele era assistente e onde aprendemos – julgando que o fazíamos por nós próprios – as consequências individuais, coletivas, sociais e políticas da fé, dos textos do Vaticano II e das encíclicas de Paulo VI (cruzando a alegria da Populorum Progressio com a desilusão da Humane Vitae). O padre Armindo Garcia personificava a pedagogia da JEC: Jesus não era uma ideia, mas sim uma Vida a iluminar as nossas vidas, a exigir que víssemos com atenção o que se passava com as pessoas à nossa roda e com elas agíssemos encontrando respostas para o que não estava certo, procurando conseguir uma vida mais digna para todos.
No princípio dos anos setenta acompanhou a nossa radicalização política, sem meios para a refrear – a rapidez com que a “abertura marcelista” se viu num beco sem saída, retomando o cinzento e bruto carácter repressivo da ditadura salazarista, só a nós, que não à sua moderação, nos dava argumentos –, mas sem nos abandonar. Sendo como sempre fora: discreto, risonho, perguntador, amigo. Nunca nos substituindo ou deixando de nos oferecer o palco inteiro para que fossemos nós, os “seus miúdos” a decidir e fazer as coisas. As que conhecia e as que pressentia, sem perguntar demasiado… confiava – essa tão difícil e tão absolutamente necessária arte de quem pretende ser educador.
Envolvido no “Caso da Capela do Rato”, lá andou interrogado pela PIDE/DGS, olhado de soslaio por muitos e criticado por outros tantos. Na sua bonomia guardou para sempre alguns momentos desses tempos, que nos recontava como quadros em que ele próprio figurava. Era um grande contador de histórias. Umas, contava-as por puro gozo, por amizade com as personagens ou por serem simplesmente hilariantes. Outras, porque iluminavam melhor do que qualquer discurso, ou autor encartado, o que discutíamos. Não sei contar as histórias que ele tão gostosamente contava. Sei que foi um homem de fé que arriscou escrever a sua história. Sei que Jesus era para ele o centro da história que quis ir escrevendo com a sua vida. Isso (e muito mais!) aprendi com ele. É uma história que graças a homens como o Padre Armindo Garcia não terminará.