
Bíblias em diferentes línguas. Foto © Hanaala76
Quando em Maio de 2017, um bombista suicida matou 22 pessoas em Manchester, as entidades muçulmanas tomaram posições contraditórias: algumas condenaram o acto terrorista e não foram ao funeral do bombista; outras declararam abertamente o seu apoio e homenagem ao “mártir” do Alcorão.
Ambas as atitudes se apoiavam no Alcorão como a infalível Palavra de Deus.
Sabemos que oposições de pontos de vista ou de justificação de actos humanos se dão em variadíssimos contextos. Basta olhar ao que se passa nos tribunais, explorando sentimentos e diversas interpretações sobre o que se julga ser o mesmo facto. E depois de se testemunhar “dizer toda a verdade e só a verdade” (jurando ou não pela Bíblia).
Como bem comentou Anselmo Borges, quem se pode arrogar de possuir a palavra de Deus? E que se pode compreender por “palavra de Deus” – essa palavra “infalível”?
Para o islão, o Alcorão é a Palavra de Deus “incarnada” na forma mais sublime e mais exacta da palavra humana (a beleza estilística é característica dos textos revelados a Maomé), que veio corrigir os erros de judeus e cristãos quanto à interpretação dos textos sagrados e prática religiosa de todos os dias.
[Lembremos que a tradução latina da Bíblia por S. Jerónimo (séc. IV, a tradução mais aceite e influente na Europa e conhecida como Vulgata) manteve a “magia” de uma “super linguagem” só inteligível para aqueles que se dedicam ao mundo do sagrado e da beleza.]
Para Maulana M. Ali, o islão é “a maior força espiritual do mundo”, que clarifica o que judeus e cristãos não souberam compreender (The Holy Qur’an, Arabic Text with English Translation and Commentary, Ohio, U.S.A. 2002, p. 31ss e 404ss). Mohammed Arkoun joga com a seguinte citação do teólogo católico Yves Congar: “A Palavra de Deus, na verdade, é Jesus Cristo e só ele. Deus só nos é acessível e cognoscível em Cristo.” E comenta: “Todos os muçulmanos subescreveriam esta profissão de fé, apenas substituindo Jesus Cristo por Alcorão” (prefácio a Le Coran, trad. por Kasimirski, Flammarion, 1970, p. 13).
Todas as religiões que se fundamentam num “livro sagrado” interpretam frases escolhidas de tal modo que justifiquem a sua própria doutrina, considerada como representante ou “incarnação” da verdade divina.
É normal existir um importante corpo de interpretações, mais ou menos baseadas em tradições, experiências religiosas ou trabalhos de investigação de carácter científico (como a hermenêutica). Nalguns casos, as interpretações são aceites como verdadeiramente enriquecedoras e até podem adquirir o mesmo nível dos “textos sagrados” originais. Aliás, a existência de conflitos entre várias afirmações (existentes na Bíblia e religiões do Oriente) é apresentada no próprio Alcorão como estímulo divino contra a fraqueza, ignorância ou impiedade dos seres humanos.
A questão é clarificada ao reflectirmos sobre o que é um Livro Sagrado.
O sentido geral de sagrado é qualificar alguma coisa ou alguém como dedicada ao que podemos chamar Deus – um ser reconhecido como “alguém” dotado de qualidades superiores incomparáveis. Prevalece o sentido geral de “colocado à parte”. Os templos religiosos formam por isso um espaço sagrado, distinto do espaço pro-fano (= frente ao templo; fanum = local para a festa dedicada aos deuses para que não seja ne-fasta; fanático é quem está ao serviço do templo, adquirindo posteriormente o sentido de inspirado e frenético). Por seu lado, templo e tempo provêm do mesmo radical indo-europeu tem (ideia de separar, cortar, hierarquizando tempos e espaços).
Porém, dizer que um texto é sagrado porque foi escrito ou inspirado por Deus, é esquecer que os seres humanos é que são os autores responsáveis por atribuir a esse texto (ou lugar ou pessoa ou data…), com maior ou menor consenso, uma dignidade merecedora do mais profundo respeito. A nossa classificação de “sagrado” é que pode ser resultante de autêntica experiência religiosa, na qual “Deus vem ao encontro de quem o procura”.
Também se verifica que um texto sagrado terá tanto mais valor quanto mais for aceite como fonte de “inspiração” que permita aprofundar e orientar os variadíssimos modos de viver nas diversas comunidades humanas. Ao longo do tempo, será suficientemente rico para nele vermos reflectidos os grandes problemas, desejos e ansiedades do género humano, e por isso pode atingir a dignidade do texto de origem. Não seria descabido afirmar que um texto é tanto mais “sagrado” quanto mais interpretações e aplicações suscita.
Nenhum texto, porém, se pode classificar de sagrado como se Deus lhe tivesse aposto um selo de autenticidade e de infalibilidade.
E será possível uma linguagem comum entre as religiões?
A unidade entre os seres humanos (não se trata de unidade entre textos) será tanto mais sólida quanto maior unidade houver entre as religiões. Unidade não é sincretismo nem apenas o natural desejo de cada qual se entender bem com os seus semelhantes. Assenta na consciência de partilharmos o cuidado do bem-estar material e espiritual – que alimenta a inteligência e vontade de procurar sobretudo o que nos une e potencia a criatividade e o gosto da Beleza como harmonia da diversidade.
Porém, o próprio conceito de Deus dificilmente arranja uma formulação “para todos os gostos”. Não poderíamos passar de características muito genéricas para qualquer religião conhecida. John Bowker[i] dá um exemplo: “existe uma Realidade tal que, no seu infinito mistério, está para além do que a inteligência humana pode conceber” ou sequer imaginar. Mas de que estamos a falar?…
E serão as religiões “diferentes caminhos para o mesmo destino”?
A escolha de um caminho está sujeita a diversos condicionalismos mais ou menos limitadores. Estes condicionalismos podem ser suficientemente poderosos para formar “famílias religiosas” diferentes e até inimigas. Como grupos de peregrinos para o mesmo local sagrado, passando o tempo a lutar entre si.
É muito difícil não colar Deus a uma imagem ou a uma experiência religiosa específica da história de cada comunidade. Cada comunidade, por muito pequena ou vasta, tende a sentir-se unida, protegida e dinâmica porque aceita (ou ao menos tolera) um texto emanado da maior autoridade possível, cuja importância e eficácia é vivida em rituais atraentes. Ora na medida em que texto e rituais se tornam rigorosamente vinculativos e estruturantes de uma mentalidade de “povo escolhido” com a missão de propagar e impor essa única verdadeira autoridade, nessa medida surgirão conflitos, menosprezo, subjugação e até extermínio dos “ímpios” – tanto mais se Religião e Estado formarem um Poder único. O modo de pensar e de agir de outras culturas e países é visto como condenável e a ser destruído.
Dizer que só as bases da nossa religião são as únicas infalíveis e que os rituais com que a exprimimos são os únicos que nos podem garantir o seguro caminho da plena realização de cada pessoa e da harmonia universal – é uma das causas principais dos conflitos, guerras e crimes da Humanidade.
Nota final: ao terminar este texto, no XX Domingo do Tempo Comum do ano C da liturgia católica (14 de Agosto), segui, como de costume, a missa no canal France 2 (Jour du Seigneur), no adro da Igreja de Nossa Senhora da Assunção de Étretat (séc. XII), com uma linda vista sobre as célebres falésias perto de Le Havre.
No texto do evangelho lido na missa, Jesus gostaria de ver o seu “fogo” espalhado pelo mundo; mas não é uma fogueira para aquecer as mãos: é o fogo do conhecimento do bem e do mal, da purificação, do dinamismo do Espírito. Nem relações afectivas e muito menos interesses de ordem inferior nos devem impedir de pôr em primeiro lugar “o que vale mais a pena”.
Manuel Alte da Veiga é professor aposentado do ensino universitário.