Papa decreta fim do segredo pontifício nos casos de abusos sexuais

| 18 Dez 19

Autoridades judiciais passam a poder aceder aos processos canónicos e aos documentos guardados em sedes eclesiásticas; delitos de pornografia também aumentam de gravidade: passam a ser considerados até aos 18 anos e não só até aos 14.

O Papa Francisco com uma criança às cavalitas, pintando o apelo: “Parem com os abusos.” ilustração do artista TVBoy. Foto: Direitos reservados

 

O Papa Francisco decidiu, nesta terça-feira – data em que completa 83 anos – abolir o segredo pontifício para os crimes de abusos sexuais cometidos por clérigos – ou seja, colocando à disposição das autoridades civis os testemunhos dos processos canónicos. Ao mesmo tempo, decretou ainda a alteração da norma relativa ao crime de pornografia infantil, inserindo-o nos casos considerados delicta graviora, os delitos mais graves: a partir de agora, passa a estar neste âmbito a detenção e difusão de imagens pornográficas envolvendo menores de 18 anos e já não apenas com 14, como até aqui.

Trata-se de “uma escolha histórica que remove obstáculos e impedimentos”, comentou o arcebispo de Malta e secretário adjunto da Congregação para a Doutrina da Fé, Charles Scicluna, que terá estado também envolvido na decisão. Em declarações ao Vatican News, Scicluna afirmou que o “rescrito” publicado traduz o pedido de muitas intervenções no debate do encontro de Fevereiro, no Vaticano, sobre os abusos.

Na ocasião, diz agora o responsável, o tema foi repetidamente referido “quase como um impedimento à informação correta dada à vítima e às comunidades”. E acrescenta: “Na minha opinião, esta decisão é histórica no contexto da instituição jurídica do segredo pontifício e chega no momento certo.”

No Religión Digital, acrescenta-se que a decisão do Papa significa o fim da omertà e da “lei do silêncio”, condenando “as acções ou omissões dirigidas a interferir ou eludir investigações civis ou investigações canónicas, administrativas ou penais, contra um clérigo ou um religioso”.

 

Garantir a confidencialidade

A notícia das duas alterações, avançada pelo portal de informação do Vaticano, Vatican News, dá conta de que esse documento é assinado pelo secretário de Estado do Vaticano, cardeal Pietro Parolin: no dia 4 deste mês, diz o texto, o Papa decidiu abolir o “segredo pontifício sobre denúncias, processos e decisões relativas aos crimes mencionados no primeiro artigo do motu próprio publicado em Maio, Vos estis lux mundi.

Estão neste âmbito, esclarece a mesma fonte, casos de violência e de actos sexuais cometidos sob ameaça ou abuso de autoridade; de abuso de menores e de pessoas vulneráveis; de pornografia infantil; e ainda de não denúncia e cobertura dos abusadores por parte de bispos e superiores gerais dos institutos religiosos.

As informações, estabelece a decisão do Papa, devem ser tratadas de modo a garantir a segurança, a integridade e a confidencialidade, conforme estabelecido no Código de Direito Canônico para garantir “o bom nome, a imagem e a privacidade” das pessoas envolvidas. Mas esta medida cautelar de “sigilo profissional” não deve impedir “o cumprimento das obrigações estabelecidas em todos os lugares pelas leis estatais”.

Isto inclui quaisquer obrigações de sinalização, “bem como a execução dos pedidos executivos das autoridades judiciais civis”. E a quem sinaliza os casos, às vítimas e às suas testemunhas “não pode ser imposto qualquer vínculo de silêncio” sobre os factos.

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Outra novidade dos documentos é a possibilidade de, a partir de agora, qualquer pessoa que não seja clérigo poder exercer o papel de advogado ou procurador nos juízos canónicos. As normas aprovadas por João Paulo II em 2004 e alteradas por Bento XVI em 2010 permitiam que apenas um padre pudesse ter esse papel.

Andrea Tornielli, director editorial do Dicastério para a Comunicação da Santa Sé, esclarece que a nova medida abrange as queixas, testemunhos e documentos processuais “relativos aos casos de abuso conservados nos arquivos dos dicastérios vaticanos, bem como os encontrados nos arquivos das dioceses e que até hoje estavam sujeitos ao segredo pontifício”. A partir de agora, acrescenta, esses documentos “poderão ser entregues aos magistrados de instrução dos respectivos países que os solicitem”.

 

O bem das crianças, acima do segredo

Grafite numa parede de Lisboa fotografado em 2011, aludindo ao abuso sexual de clérigos sobre menores. Foto Milliped/Wikimedia Commons

 

É mais um “sinal de abertura, de disponibilidade, de transparência, de colaboração com as autoridades civis” que o Papa Francisco dá, com este gesto, comenta o responsável do Vaticano, jornalista profissional, nomeado para o cargo há precisamente um ano (18 de Dezembro de 2018). No caso dos organismos do Vaticano, o pedido terá de ser feito “através de uma carta rogatória internacional, habitual no contexto das relações entre os Estados”.

Já quanto aos casos arquivados nas cúrias diocesanas, os magistrados de investigação podem fazer o pedido ao respectivo bispo. Os regimes especiais que podem estar em acordos ou concordatas entre a Igreja e os Estados, não serão afectados.

O fundamento da decisão, defende Tornielli, é “o bem das crianças e dos jovens”, que deve vir sempre antes “de qualquer tutela do segredo, mesmo do ‘pontifício’”. Esclareça-se, no entanto: o rescrito “não afecta de modo algum o sigilo sacramental, isto é, o segredo da confissão” nem tão pouco significa que “os documentos dos processos devam tornar-se de domínio público e, por conseguinte, destinados à divulgação”.

O arcebispo Scicluna também insiste que a ideia é facilitar “a colaboração com o Estado e com outros organismos que tenham direito de acesso a essa documentação”, mas mantendo a privacidade dos envolvidos.

No final da cimeira do Vaticano sobre os abusos, o Papa apontou 21 pontos de reflexão sobre o tema. No ponto 5, Francisco referia precisamente a necessidade de “informar as autoridades civis e eclesiásticas superiores, respeitando as normas civis e canónicas”. Como se sublinhava na altura no 7MARGENS, esse é um factor que tem estado ausente dos procedimentos de muitos bispos e tem constituído uma das razões para o encobrimento.

(Nota: o título e o início do texto foram alterados, para retirar a ideia de um “presente” dado às vítimas.)

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