Papa defende “uma lei de união civil” para os homossexuais

| 22 Out 2020

Num documentário, o Papa manifesta abertura às uniões civis de homossexuais. Já o fizera noutras ocasiões, mas agora fica dito de forma mais clara. Francisco insiste na ideia do acolhimento das pessoas como a mais importante, mas estas afirmações serão um indício de que pretende pelo menos o debate no interior da Igreja? Ou quer mesmo levar à mudança do pensamento católico oficial sobre o tema?…

Homofobia. Homossexualidade

Manifestação em Estrasburgo, em Janeiro de 2013: “Perante a homofobia, Jesus grita”, diz o cartaz. Foto © Claude Truong-Ngoc/WikiCommons

 

“Os homossexuais têm o direito a ter uma família. Eles são filhos de Deus. O que temos de ter é uma lei de união civil. Assim beneficiam de proteção legal. Eu defendi isso.”

A afirmação do Papa Francisco espalhou-se rapidamente na tarde desta quarta-feira, 21, depois da exibição do documentário Francesco, do realizador Evgeny Afineevsky, que estreou no Festival de Cinema de Roma, e será exibido nesta quinta nos Jardins do Vaticano, para receber o 18º prémio Kinéo.

O filme, de acordo com as agências internacionais reproduzidas em vários média, aborda diversos temas que têm sido objecto de tomadas de posição do Papa, como o ambiente, a pobreza, as migrações, a desigualdade racial e a discriminação.

“Ninguém deve ser expulso de casa ou obrigado a sentir-se miserável por causa disso”, diz ainda Francisco no documentário.

Mesmo se não é a primeira vez que o Papa Francisco abre esta porta, é a primeira que o faz de forma tão clara. Em Março de 2014, em entrevista ao Corriere della Sera, o Papa afirmou que é preciso analisar caso a caso as uniões civis para casais homossexuais, embora afirmando que “o casamento é entre um homem e uma mulher”. Na semana seguinte, o cardeal Timothy Dolan, arcebispo de Nova Iorque, confirmou a vontade de Francisco de estudar as uniões homossexuais e os motivos que têm levado vários países a legislar sobre o tema.

 

Um diálogo com Dominique Wolton
papa francisco. dominique wolton

O Papa Francisco com o sociólogo francês Dominique Wolton, durante as suas conversas publicadas no livro Um Futuro de Fé. Foto: Direitos reservados

 

Em 2017, no livro de conversas com o sociólogo francês Dominique Wolton, Um Futuro de Fé (ed. Planeta), o Papa argentino também admite essa possibilidade. O diálogo sobre o tema é o seguinte:

Papa Francisco: Não gostaria que se confundisse a minha posição em relação à atitude face às pessoas homossexuais com a questão da teoria do género.

Dominique Wolton: Sim, é evidente. A diferença é essencial! É possível que a ‘união civil’ fosse suficiente. Mas há, neste momento, uma aspiração à legitimidade por parte da comunidade homossexual. Uma necessidade de ultrapassar séculos de domínio e exclusão. No fundo, de os legitimar, mesmo que isso se pareça com uma ideologia da igualdade.

Papa Francisco: Sim, é uma ideologia.

Dominique Wolton: Mas é compreensível que exista, depois de tantos séculos de desprezo, de culpabilização e de repressão! Na verdade, há muitos homossexuais que não são necessariamente favoráveis ao ‘casamento’. Alguns preferem a união civil. Tudo isso é complicado. Para lá da ideologia da igualdade, há também, na palavra ‘casamento’ uma procura de reconhecimento.

Papa Francisco: Mas não é um casamento, é uma união civil. ‘Não há outro meio’, deixemos estar assim…” (p. 241)

Do diálogo tido, Wolton também concluía, como disse em Madrid, em Março de 2018, que para o Papa as uniões civis eram possíveis.

 

A mesma posição de base há anos

Enquanto arcebispo de Buenos Aires, o então cardeal Jorge Mario Bergoglio também falara do assunto no contexto do debate sobre as uniões do mesmo sexo na Argentina. A sua posição da época – estávamos em 2009/2010 –, apresentava já muitas das linhas do que ele tem dito enquanto Papa.

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No livro Sobre o Céu e a Terra (ed. Clube do Autor), em que se registam diálogos com o rabi judeu Abraham Skorka, Bergoglio diz que há que respeitar as pessoas homossexuais na sua vida privada, as instituições religiosas não as devem perseguir espiritualmente e o carácter do matrimónio deve ser preservado independentemente da legislação sobre as uniões civis.

Se é perceptível, agora, alguma evolução sobre o tema, na clareza com que admite a possibilidade de união civil, com a sua afirmação no documentário – “O que temos de ter é uma lei da união civil” – Francisco dá a entender que mantém, ao mesmo tempo, a sua opção de distinguir o matrimónio/casamento, de um lado, e as uniões civis homossexuais, do outro.

Com as afirmações no documentário, Francisco contraria, entretanto, duas posições anteriores do magistério católico. Em Junho de 2003, o então cardeal Joseph Ratzinger, que seria eleito dois anos depois como Papa, era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e publicou a carta Considerações sobre os projectos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais.

No documento, escrevia ele que “as legislações que favorecem as uniões homossexuais são contrárias à recta razão, porque dão à união entre duas pessoas do mesmo sexo garantias jurídicas análogas às da instituição matrimonial”. Por isso, “o Estado não pode legalizar tais uniões sem faltar ao seu dever de promover e tutelar uma instituição essencial ao bem comum, como é o matrimónio”. E acrescentava: “Em presença do reconhecimento legal das uniões homossexuais ou da equiparação legal das mesmas ao matrimónio, com acesso aos direitos próprios deste último, é um dever opor-se-lhe de modo claro e incisivo. Há que abster-se de qualquer forma de cooperação formal na promulgação ou aplicação de leis tão gravemente injustas e, na medida do possível, abster-se também da cooperação material no plano da aplicação. Nesta matéria, cada qual pode reivindicar o direito à objecção de consciência.”

Já em Março de 2016, na sequência das duas assembleias do Sínodo dos Bispos sobre a família, Francisco publicou a exortação Amoris Laetitia (“A Alegria do Amor”), na qual registava o que se passara nos debates, embora sem avançar, neste caso, com a sua doutrina acerca do tema: “No decurso dos debates sobre a dignidade e a missão da família, os Padres sinodais anotaram, quanto aos projectos de equiparação ao matrimónio das uniões entre pessoas homossexuais, que não existe fundamento algum para assimilar ou estabelecer analogias, nem sequer remotas, entre as uniões homossexuais e o desígnio de Deus sobre o matrimónio e a família.”

Aliás, no Sínodo de 2015, o parágrafo sobre o acolhimento de homossexuais nas comunidades foi um dos dois –o outro foi sobre a comunhão dos divorciados recasados – que não teve a maioria de dois terços necessária para a aprovação.

 

Acolhimento e encorajamento
cartaz do filme Francesco, de

Cartaz do filme Francesco, de Evgeny Afineevsky.

 

Do que fica dito, depreende-se que, para o Papa, o que está em causa é o reconhecimento de um estatuto legal e jurídico diferenciado entre o matrimónio/casamento e as uniões civis entre pessoas do mesmo sexo. Mas as afirmações do documentário indiciam também que o Papa pode querer pelo menos debater o tema no interior da Igreja e levar a uma mudança na posição oficial sobre a matéria.

Mesmo sabendo que há resistências a isso da parte de muitos membros da hierarquia, também é claro que cada vez mais bispos ou cardeais defendem mesmo a possibilidade de bênçãos religiosas às uniões do mesmo sexo. Nos Estados Unidos ou na Alemanha, por exemplo, há quem defenda essa opção, como o 7MARGENS já noticiou em várias ocasiões.

No documentário, conta a Renascença, um dos momentos mais comoventes do filme é o do telefonema de Francisco a um casal homossexual que cuida de três filhos pequenos, em resposta a uma carta deles lamentando a falta de acolhimento na paróquia católica.

O conselho de Bergoglio a Rubera, o membro do casal com quem o Papa falou, foi que levasse as crianças à paróquia, em qualquer caso, independentemente de quaisquer julgamentos, ainda segundo a mesma fonte. Rubera acrescenta no filme que a decisão foi acima de tudo benéfica para os menores e que, na conversa tida, o Papa não fez qualquer comentário sobre a sua decisão de viver com outro homem. “Ele não disse qual era a sua posição sobre a minha família. Provavelmente segue a doutrina em relação a isso”, afirma, elogiando Francisco, contudo, pelo acolhimento manifestado e pelo encorajamento dado.

Nos últimos anos, aliás, Francisco teve vários gestos do género em relação a casais homossexuais. Com eles deu sequência à sua pergunta, no voo de regresso do Rio de Janeiro, logo em 2013, pouco depois da sua eleição: “Quem sou eu para julgar?” os gays, perguntou.

 

Imagens “de grande impacto”
Papa Francisco, durante a Oração pela Humanidade, na Praça de São Pedro.

O Papa Francisco, durante a Oração pela Humanidade em Março, na Praça de São Pedro. Foto da transmissão vídeo do Vatican Media.

 

O documentário de Evgeny Afineevsky, realizador russo nascido em Kazan em 1972, mas a viver nos Estados Unidos, inclui entrevistas com o Papa e o seu antecessor, Joseph Ratzinger, além de familiares de Bergoglio e outros depoimentos. Os temas abordados, noticia o Vatican News, abrangem os desafios contemporâneos mais urgentes a precisar de resposta e a missão da Igreja em dar atenção aos que sofrem injustiças.

Afineevsky, que teve o seu filme Winter on Fire: Ukraine’s Fight for Freedom (Inverno em Chamas: A Luta da Ucrânia pela Liberdade) nomeado para o Óscar de Melhor documentário em longa metragem em 2016, concluiu as filmagens de Francesco em Junho, já em plena pandemia de covid-19. Outro filme do realizador, Cries from Syria (“Gritos da Síria”), teve, em 2018, três nomeações para os prémios Emmy.

Diz ainda o Vatican News que são “de grande impacto” as imagens usadas em Francesco acerca de temas como a pandemia, o racismo, os abusos sexuais na Igreja, a guerra na Síria e na Ucrânia ou a perseguição dos muçulmanos rohingya. E o Papa responde a perguntas “com sabedoria e generosidade” e partilha “exemplos comoventes das suas lições de vida”, relançando ideais que “nos podem ajudar a construir uma ponte para um futuro melhor e a crescer como comunidade global“.

O Prémio Kinéo Cinema para a Humanidade, que esta quinta-feira será entregue ao realizador, é atribuído a obras que promovem temas sociais e humanitários. Este ano, informa o Vatican News, será entregue pessoalmente por Rosetta Sannelli, a criadora do galardão, que destaca o valor histórico do filme: “Cada uma das viagens do Papa Francisco a várias partes do mundo está documentada no trabalho de Afineevsky através de imagens e filmagens de notícias, e revela um autêntico vislumbre dos acontecimentos do nosso tempo.”

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