
Papa Francisco fez nesta viagem ao Canadá um ‘mea culpa’ pelos abusos cometidos no passado, perante representantes indígenas. Foto © Vatican Media.
Depois da primeira viagem ao Canadá ter sido marcada pelo mea culpa de Francisco perante representantes indígenas pelos abusos cometidos no passado, só no avião de regresso a Roma o Papa usou a palavra “genocídio” — bem mais forte — sobre o que representaram as políticas de assimilação cultural e de ocupação do território indígena neste país americano.
A palavra não foi usada durante a viagem de seis dias ao Canadá, concluída na sexta-feira, mas Francisco desvalorizou o facto. “É verdade, não usei a palavra porque não me veio à mente, mas descrevi o genocídio e pedi desculpas, perdão, por esse trabalho [nas escolas residenciais, na sua maioria administradas pela Igreja Católica] que é genocida”, referiu este sábado, na habitual conferência de imprensa a bordo do avião que o transportou até Roma.
O Papa respondia à questão de uma jornalista canadiana, recordando que, nos seus discursos e homilias, condenou as práticas que levaram as potências coloniais a “tirar as crianças, mudar a cultura, mudar as mentalidades, mudar as tradições, mudar uma raça – por assim dizer – toda uma cultura”.
“Sim, é uma palavra técnica. Genocídio. Não a usei porque não me veio à cabeça, mas descrevi… É verdade, sim, sim, é genocídio. Não se preocupe, pode relatar que eu disse que foi genocídio”, apontou, citado pela Agência Ecclesia.
Estima-se que 150 mil crianças indígenas tenham sido forçadas a frequentar escolas residenciais, um sistema de orfanato promovido pelo Governo, para a “assimilação” cultural destas populações, entre finais do século XIX e o séc. XX; mais de 60% destas escolas foram administradas pela Igreja Católica.
Em 2015, após sete anos de investigação, a Comissão de Verdade e Reconciliação do Canadá divulgou um relatório sobre escolas residenciais, revelando que entre 1890 e 1996 mais de 3 mil crianças morreram por causa de doenças, fome, frio e outros motivos.
“Doutrina da colonização”: uma “má e injusta doutrina”
O Papa falou ainda do que considerou como “doutrina da colonização”, observando que “é má, é injusta e ainda é usada hoje”.
“Na nossa colonização, na América – a dos ingleses, dos franceses, dos espanhóis e dos portugueses – sempre existiu esse perigo, mesmo essa mentalidade: somos superiores e os nativos não contam. E isso é sério”, advertiu.
Questionado sobre se a não revogação da chamada “doutrina da descoberta” teria sido uma “oportunidade perdida”, Francisco assumiu a necessidade de “ir atrás e curar o que foi feito de errado, na consciência de que o colonialismo existe hoje”.
A questão liga-se a documentos papais, do séc. XV, utilizados para justificar a apropriação de territórios indígenas, por parte das potências europeias; o conceito chegou a ser aplicado nos processos entre os novos Estados da federação americana e os povos nativos, tendo impacto nas leis de propriedade.
O Papa argentino recordou que, no pensamento da época, “não só [os indígenas] eram considerados inferiores, como alguns teólogos, um pouco tontos, questionavam se teriam alma”.
O Vaticano cita, a este respeito, a Bula ‘Sublimis Deus’, de Paulo III, de 1537: “Definimos e declaramos que os mencionados índios e todos os outros povos que posteriormente venham a ser descobertos pelos cristãos, de modo algum devem ser privados da sua liberdade e posse dos seus bens.”

O drama “criminoso” da escravatura
Francisco evocou o drama “criminoso” da escravatura, sublinhando que algumas vozes da Igreja se opuseram a estas práticas, mas “eram a minoria”. “A consciência da igualdade humana chegou lentamente. Digo a consciência, porque no inconsciente ainda há algo: temos sempre uma atitude colonialista, de reduzir as outras culturas à nossa”, precisou.
O Papa deixou elogios à defesa, nos povos indígenas, de valores perdidos nas sociedades ocidentais, como o da “grande harmonia” com a natureza.
Já no final do diálogo com os jornalistas, que durou mais de meia hora, Francisco destacou que a viagem ao Canadá foi muito ligada à figura de Santa Ana – com passagens pelo lago homónimo e a basílica que lhe é dedicada, locais tradicionais de peregrinação dos povos indígenas. “Sublinhei algo que é claro: a fé deve ser transmitida em dialeto, e o dialeto – disse-o claramente – maternal, o dialeto das avós. Recebemos a fé nessa forma dialetal feminina, e isso é muito importante: o papel das mulheres na transmissão da fé e no desenvolvimento da fé”, indicou.
Francisco defendeu a importância de “entrar nesse pensamento da Igreja feminina, da Igreja mãe”, superando “qualquer fantasia ministerial dominada por homens ou qualquer poder dominado por homens”.
A viagem de um “mea culpa”

A despedida do Canadá teve lugar no aeroporto de Iqaluit, junto ao círculo polar ártico, depois de uma visita marcada pelo mea culpa de Francisco, perante representantes indígenas, pelos abusos cometidos no passado.
Esta 37ª viagem internacional do pontificado, apresentada como uma “peregrinação penitencial” — e marcada por dificuldades do Papa em deslocar-se sem o auxílio de uma cadeira de rodas — iniciou-se na cidade de Edmonton, na região ocidental do Canadá, onde foi recebido por autoridades dos povos nativos.
Numa síntese disponibilizada pela Agência Ecclesia refere-se que a primeira etapa foi totalmente dedicada às populações nativas das chamadas Primeiras Nações, Métis e Inuítes, evocando as vítimas das chamadas “escolas residenciais”, criadas pelo Governo canadiano e confiadas a Igrejas cristãs, incluindo a católica.
Em vez dos habituais encontros com as autoridades civis e membros do corpo diplomático, a primeira paragem do Papa foi um encontro com os sobreviventes desse sistema de ensino residencial, em Maskwacis.
Francisco fez um primeiro pedido de perdão, “pelo mal cometido por tantos cristãos contra os povos indígenas”, reforçado diante da comunidade católica. O genocídio de que falou agora no voo de regresso ao Vaticano.
No Santuário de Santa Ana de Beaupré, o Papa presidiu a uma missa pela reconciliação, com participação especial de comunidades indígenas, desafiando a Igreja Católica a “sarar as feridas do passado”.
A celebração ficaria marcada por um momento de protesto, no início da Eucaristia, quando dois manifestantes seguraram uma faixa pedindo o fim da “doutrina da descoberta”.
Ainda no Quebeque, perante membros do clero e de institutos religiosos, Francisco pediu perdão às vítimas de abusos sexuais por membros da Igreja ou em instituições católicas, no Canadá, assumindo que esta é uma “luta irreversível”.
Num encontro com representantes indígenas do leste do Canadá, o Papa renovou a sua mensagem em favor da reconciliação e da “busca da verdade”.
Bispos: “Marco significativo no caminho da reconciliação”
A Conferência Episcopal do Canadá saudou na sexta-feira a “histórica visita” do Papa Francisco ao país, que se concluiu junto ao círculo polar ártico, após seis dias de viagem.

“Os bispos do Canadá agradecem a histórica visita do Papa Francisco ao nosso país. Ele veio cumprir a sua promessa de manifestar, com a sua própria presença, a sua proximidade com os povos indígenas desta terra. Esta visita representa um marco significativo no caminho da cura e da reconciliação”, pode ler-se num comunicado divulgado online.
O texto evoca os vários discursos públicos e privados em que Francisco deixou um “sincero e solene pedido de desculpas” aos povos indígenas em nome da Igreja Católica e manifestou “profunda tristeza pelo impacto duradouro da colonização”, reconhecendo “o impacto catastrófico do sistema de escolas residenciais” e pedindo “perdão por abusos, incluindo abusos sexuais, cometidos por membros da Igreja”.