
O Papa Francisco numa das audiências na Praça de São Pedro, Vaticano, em 2022. Foto © Tony Neves.
Estou deslumbrado com estas Quedas do Iguaçu, a sentir-me ensopado pela humidade que toma conta deste ar, mas, sobretudo, estou a rever na memória o filme A Missão e a olhar para onde começa a Argentina do Papa Francisco. Este é um lugar Laudato Si’, cheio de Missão, um espaço simbólico ideal para fazer o balanço de dez anos proféticos deste Papa que nos anima e mobiliza como Igreja.
Lufada de ar fresco
Francisco chegou a Roma há dez anos com o passaporte de Jorge Bergoglio. E, quer queiramos quer não, está a fazer uma revolução imparável na Igreja, como tão bem mostra o livro de António Marujo e Joaquim Franco. Ninguém é igual a ninguém, mas Francisco dá toques de enorme originalidade. Nota-se uma lufada de ar fresco nos documentos pontifícios, nas escolhas de visitas, nas assembleias sinodais sobre a família, a Amazónia e os jovens, na ousada reforma da Cúria, nas entrevistas e outros escritos, nas linhas de combate aos abusos, na opção clara pelos migrantes, refugiados, perseguidos e outros descartados sem vez e sem voz, na sua visão sobre economia, política e sociedade contra a globalização da indiferença, nas opções de focagem pastoral, na valorização do ecumenismo e diálogo inter-religioso, na simplicidade e alegria do seu ser e atuar.
São dez anos de uma respiração eclesial diferente, com uma aposta clara na sinodalidade (como sinal de abertura à inspiração do Espírito) e no combate sem tréguas a tudo quanto desfigura o rosto da Igreja. Dá uma colaboração gigante na construção de uma Igreja credível, encurtando distâncias entre o dizer e o fazer. Está a provar ao mundo que a Igreja faz falta à humanidade, tentando acreditá-la dentro e fora de portas.
Viagens cirúrgicas
Paulo VI ousou sair de Itália, João Paulo II universalizou as viagens apostólicas, Bento XVI deu continuidade e o Papa Francisco já lá vai com 40 saídas ao encontro das periferias e das margens da história. As suas opções de voo dão corpo ao primeirear de que fala na Alegria do Evangelho, o seu primeiro programa de missão.

O Papa em encontro ecuménico durante a viagem ao Bahrein. Foto © Vatican Media.
O diálogo e a fraternidade são os grandes caminhos universais para a paz e a justiça. Só assim se podem compreender viagens ao Bahrein, ao Cazaquistão, à Tailândia, ao Iraque, ao Japão, a Marrocos, aos Emiratos Árabes Unidos, a Myanmar, ao Bangladesh, ao Egipto, à Geórgia, ao Azerbaijão, ao Sri Lanka, à Terra Santa, à Turquia, bem como a última, à RD Congo e ao Sudão do Sul. Só mesmo a aposta no diálogo entre povos, culturas e religiões pode justificar tais visitas que mostram que, para o Papa Francisco, o mundo é um espaço sem fronteiras e a fraternidade é uma palavra-chave.
A força dos documentos pontifícios
O Papa Francisco tem ajudado o mundo e a Igreja e olhar para a Alegria do Evangelho, a Alegria do Amor, a Alegria da Ecologia, a Alegria das Bem-Aventuranças… Há uma convicção profunda de que sem justiça não há felicidade.
A Alegria do Evangelho (2013) foi recebida, na Igreja e fora dela, como algo de muito original, se atendermos ao facto de ser um documento programático, como exortação apostólica que é. É nova nos conteúdos, nas focagens e no estilo. Põe a nu uma série de ladrões que é urgente combater! Diz: ‘Não deixemos que nos roubem a alegria da Evangelização (n.º 83); Não deixemos que nos roubem a esperança (n.º 86); Não deixemos que nos roubem a comunidade (n.º 92); Não deixemos que nos roubem o Evangelho (n.º 97); Não deixemos que nos roubem o ideal do amor fraterno (n.º101); Não deixemos que nos roubem a força missionária (n.º 109)’. É preciso combater, de alma e coração, quem nos faz estes ‘assaltos’! ‘Primeirear’, ou seja, ‘tomar a iniciativa’ deve ser uma das imagens de marca dos missionários hoje (n.º24). Nós somos convidados por Francisco (e, antes dele, por Cristo) a sermos “Igreja em saída”, na rua, a partilhar a sorte a má sorte de todos, sobretudo dos pobres, mesmo sujando as mãos (n.º 20).

O Papa Francisco na das cerimónia de beatificação do Papa João Paulo I, na Praça de São Pedro, Vaticano, em 4 de setembro de 2022. Foto © Tony Neves.
Ecologia Integral e Fraternidade Universal
Na Laudato Si’ (2015), documento social do Papa Francisco, é apresentado o conceito de ‘ecologia integral’, pois há que amar os pobres e respeitar a natureza, a nossa casa comum. Tudo está interligado, estamos na mesma barca a enfrentar a mesma tempestade e, ou nos salvamos juntos, ou morremos todos afogados. O filme A Carta, recentemente realizado, mostra os efeitos dramáticos das alterações climáticas na vidas dos mais pobres e faz um apelo a uma conversão ecológica global, combatendo a poluição, ajudando os mais frágeis e escolhendo um estilo de vida mais simples e mais fraterno.
A Fratelli Tutti (2020) resulta da convicção profunda do Papa Francisco da importância decisiva da Fraternidade Humana, depois de ter assinado o documento de Abu Dhabi.
O futuro no planeta jovem
Vindo dum continente muito jovem, mas onde os jovens têm o futuro seriamente comprometido, é normal a sua opção clara pelas novas gerações. Na Jornada Mundial da Juventude 2016 (Cracóvia), o Papa pediu aos jovens que abandonassem o comodismo fácil do sofá. Disse: “Este tempo aceita apenas jogadores titulares em campo, não há lugar para suplentes. O mundo de hoje pede-vos para serdes protagonistas da história, porque a vida é bela desde que a queiramos viver, desde que queiramos deixar uma marca.”
Em Lisboa, a JMJ pretende ser a mais ecológica de sempre e, para tal, existe o simbólico gabinete ‘Diálogo/Proximidade’, com o objetivo claro de ajudar toda a organização a assegurar que a JMJ aplica os valores gravados na Laudato Si’ e na Fratelli Tutti.
Gestos que apontam para o futuro

Papa Francisco, durante a Oração pela Humanidade, na Praça de São Pedro. Foto da transmissão vídeo.
Viver em Santa Marta, lavar os pés a reclusas, deslocar-se num carro simples, rezar sozinho à chuva pelo fim da pandemia, fazer a primeira viagem a Lampedusa para chorar aqueles por quem ninguém chora, beijar os pés dos líderes desavindos do Sudão do Sul, deixar-se entrevistar, aprofundar os encontros de Assis, gritar que a guerra é sempre uma derrota para a humanidade, apostar numa educação e numa economia que não matem, chorar na oração pelas vítimas na Ucrânia… fazem dele um homem sem medo de expor o peito às balas, vindas de fora ou de dentro da Igreja.
O futuro da Igreja e da humanidade está na sinodalidade, este caminhar juntos, em atitude de escuta e diálogo aberto, na mesma direção, empurrados e inspirados pelo Espírito Santo que sopra quando quer, como quer e onde quer. Por isso, todos os tempos, lugares e pessoas são decisivos para a construção do mundo e da Igreja do amanhã.
Tony Neves é padre católico e trabalha em Roma como assistente geral dos Missionários do Espírito Santo (CSSp, Espiritanos), congregação de que é membro.