
Eram 8h29 desta terça-feira, 31 de janeiro, quando o voo A 359/AZ² da Ita Airways descolou do Aeroporto de Fiumicino, em Roma, com destino a Kinshasa. Foto © Vatican Media.
O Papa acaba de embarcar naquela que tem sido descrita como uma das viagens mais ousadas do seu pontificado, mas cujos riscos associados não foram motivo suficiente para que abdicasse de a fazer. Apesar dos problemas de saúde que o obrigaram a adiá-la, Francisco insistiu sempre que queria ir à República Democrática do Congo e ao Sudão do Sul. Mais do que uma viagem, esta é uma missão de paz. E no Congo, em particular, onde os conflitos já custaram a vida de mais de seis milhões de pessoas e cuja região leste tem sido atingida por uma violência sem precedentes, a presença do Papa será determinante para mostrar a toda a comunidade internacional aquilo que ela parece não querer ver.
Eram 8h29 desta terça-feira, 31 de janeiro, quando o voo A 359/AZ² da Ita Airways descolou do Aeroporto de Fiumicino, em Roma, relata o Vatican News. Partiu com pouco mais de meia hora de atraso em relação ao programa previsto, porque antes de embarcar no avião que o levaria a Kinshasa, já a missão de paz de Francisco havia começado.

Bem cedo, o Papa recebeu em sua casa uma dezena de migrantes e refugiados, provenientes precisamente da República Democrática do Congo e do Sudão do Sul, que se encontram a viver no Centro Astalli, em Roma, sede italiana do Serviço Jesuíta aos Refugiados. Com eles, vinha o prefeito do Dicastério para a Caridade, o cardeal Konrad Krajewski.
Depois, já em Fiumicino, Francisco fez questão de parar junto ao Kindu War Memorial, monumento que recorda os 13 aviadores italianos assassinados no Congo a 11 de novembro de 1961, e ali fazer uma breve oração.
Só então partiu. Itália, Tunísia, Argélia, Níger, Chade, República Centro-Africana, Camarões, Congo: estes foram os países sobrevoados pelo avião que levou Francisco até à capital da República Democrática do Congo, e a cada chefe de Estado desses países enviou um telegrama de saudação, como já é habitual.
Igreja Católica congolesa “entre as mais fecundas da África”

Mas o que tinha Francisco à sua espera na República Democrática do Congo? A Igreja Católica neste país está entre as mais antigas da região subsaariana. A sua primeira evangelização, obra de missionários portugueses, remonta aos finais do século XV: o rei do Kongo, Nzinga Nkuwu, foi batizado a 3 de maio de 1491 e o cristianismo tornou-se então a religião oficial do Reino.
O catolicismo assumiu ainda mais força durante o domínio colonial belga (1877-1960). Data desta época a chegada dos Padres Brancos, das Missionárias de Scheut e das primeiras monjas. O Estado belga apoiou ativamente a criação de escolas e hospitais católicos e, em 1954, foi inaugurada a primeira Universidade do Congo, a Universidade Jesuíta de Louvain, em Léopoldville (atual Kinshasa).
As boas relações entre o Estado e a Igreja deterioraram-se após a independência do país e, em particular, durante a ditadura de Mobutu Sese Seko (1965-1997), que por etapas procedeu à abolição do Natal como dia festivo, à nacionalização das escolas católicas e à proibição de símbolos religiosos em edifícios públicos. Apesar disso, a Igreja Católica congolesa continua a estar “entre as mais fecundas da África”, destaca o Vatican News.
A prova está no número de católicos, que numa população total de 100 milhões representam cerca de 50%, assinala o jornal britânico The Tablet. A Igreja conta ainda com mais de quatro mil sacerdotes diocesanos na República Democrática do Congo, sendo numerosos os sacerdotes Fidei Donum, missionários na África, Europa e América. A estes, somam-se mais de 11 mil religiosos e religiosas, comprometidos nos vários âmbitos da pastoral. Uma missão que se realiza também através dos meios de comunicação: atualmente, existem mais de 30 rádios e vários canais de televisão diocesanos, para além de inúmeros jornais e outras publicações.
Mas se isto significa que muitos anseiam pela visita do Papa e que o seu acolhimento será caloroso, não é no entanto sinónimo de um país em paz.
Mais de 200 civis assassinados no último mês e meio

Nos últimos meses, registou-se um aumento da violência no leste da República Democrática do Congo, onde o país faz fronteira com o Ruanda, e onde se encontram as minas de coltan, fundamental para a indústria de equipamentos eletrónicos. Ali, estão identificados mais de 100 grupos armados ativos, nomeadamente o Movimento 23 de Março (M23), que, apoiado pelo Ruanda, chegou a ocupar um território tão vasto como a Bélgica, cercando e ameaçando a capital do Kivu do Norte, e também as Forças Democráticas Aliadas (ADF), movimento islâmico de origem ugandense que opera especialmente na zona de Beni-Butento.
Com o sofrimento do povo congolês constantemente no centro das suas preocupações, o Papa Francisco tinha manifestado vontade de fazer uma escala na atormentada província de Kivu do Norte para encontrar as vítimas da violência, mas esta etapa, que chegou a estar prevista no programa da viagem apostólica, foi cancelada pela insegurança que persiste na região.
Só nas últimas seis semanas, nas províncias e Kivu do Norte e Ituri, foram assassinados mais de 200 civis, e estima-se que cerca de 52 mil pessoas tenham fugido, somando-se assim aos 5,6 milhões de deslocados presentes no país, o maior número da África e um dos mais altos do mundo.
Na realidade, o leste da República Democrática do Congo nunca conheceu a verdadeira paz desde que, após o genocídio de Ruanda em 1994, mais de um milhão de refugiados chegaram a essa região. Aqui, em 1996, teve origem a primeira guerra congolesa que levou à queda do regime de trinta anos de Mobutu Sese Seko; e também aqui, com a segunda guerra que começou em 1998, se exacerbaram as relações com o ex-aliado Ruanda. Hoje, a tensão entre Kinshasa e Kigali está no auge e o leste do Congo continua a ser atingido pela violência e pela pilhagem ininterrupta dos seus recursos naturais.
A visita do Papa “poderá mudar a realidade deste país”

“Nas últimas semanas, as notícias mostraram-nos quantos ataques armados, quantas pessoas foram atacadas… Na nossa comunidade que se encontra na parte leste da República Democrática do Congo, um dos nossos jovens em formação foi baleado…”, conta à Fundação Ajuda á Igreja que Sofre (AIS) o padre Marcelo Oliveira, administrador principal da província dos Combonianos naquele país.
“O Papa vem como pastor, como pastor da paz e creio que esta sua visita vai de facto permitir-lhe encontrar-se com as situações de violência, de sofrimento que este povo continua a atravessar depois de muitas décadas”, afirma o padre Marcelo, natural de Mortágua, diocese de Coimbra, acrescentando que acredita que a visita “poderá ser significativa, poderá mudar em muito a realidade deste país”.
O padre congolês Paulin Sabuy, que tem colaborado na organização desta visita, concorda. Em entrevista ao Religión Digital, explica que esta visita “tem uma dimensão profética e interpela a comunidade internacional para que não afaste o olhar nem se mostre indiferente ao sofrimento que, desde há tantos anos, o povo congolês padece. Desde logo, se quisesse, a comunidade poderia fazer muito mais: a paz e o desenvolvimento não são impossíveis”, defende.
O cardeal Fridolin Ambongo, arcebispo de Kinshasa e presidente da Conferência Episcopal Nacional do Congo, é mais duro nas suas palavras: “Constatamos com amargura que a comunidade internacional é cúmplice do que aconteceu no Leste, pela simples razão de que todos sabem o que está a acontecer. Mas fingem não ver…”, afirmou à revista Mondo e Missione, no passado dia 25.
Perante a impossibilidade de ir até ao leste do país, o Papa irá reunir-se na nunciatura com um grupo de vítimas oriundas dessa região, que darão testemunho do que viveram. Haverá também um encontro com representantes de organizações católicas que têm ajudado as populações deslocadas, como a Comunidade de Sant’Egídio, com o seu projeto Dream.
Recorde-se ainda que a visita do Papa acontece em pleno ano eleitoral (o novo chefe de Governo da República Democrática do Congo será escolhido em dezembro), e os anos eleitorais neste país empobrecido estão normalmente marcados por violentos protestos e denúncias de irregularidades. De resto.as relações entre a Igreja e o atual Governo congolês têm sido algo tensas nesse campo, dado que a Igreja foi uma das instituições que colocou em causa a validade das últimas eleições, em 2018. Recentemente, o bispo Donatien Nshole, secretário-geral da Conferência Episcopal Nacional do Congo aproveitou para deixar o recado: seria bem-vindo um apelo do Papa Francisco à condução de eleições livres e pacíficas.