Muitos pobres “experimentam formas muito duras de privação da vida”, pelo que necessitam ainda mais da arte, disse o papa perante duzentos artistas, entre os quais sete portugueses.

O Papa com o Juízo Final de Miguel Ângelo em fundo: Francisco pediu aos artistas que fujam da “falsa beleza cosmética”, que muitas vezes é “cúmplice dos mecanismos económicos que geram desigualdades”. Foto © Vatican Media.
O Papa Francisco pediu aos artistas que interpretem o “grito silencioso” dos pobres. “Não se esqueçam dos pobres, que são os preferidos de Cristo, em todas as formas em que se é pobre hoje. Também os pobres necessitam de arte e de beleza”, afirmou o Papa, durante um encontro na Capela Sistina com um grupo de duas centenas de artistas contemporâneos, entre os quais sete portugueses.
Muitos pobres “experimentam formas muito duras de privação da vida”, pelo que necessitam ainda mais da arte, disse Francisco, diante de artistas consagrados como o indo-britânico Anish Kapoor, o pianista italiano Ludovico Einaudi, o realizador norte-americano Abel Ferrara ou o escritor espanhol Javier Cercas.
“Normalmente, [os pobres] não têm voz e vocês podem ser intérpretes do seu grito silencioso”, disse o Papa, num discurso que pode ser lido (por enquanto apenas em italiano ou inglês) na página do Vaticano na internet.
A ouvi-lo, estavam ainda os angolanos Paulo Flores, músico, e Pedro A.H. Paixão, artista plástico; o artista plástico brasileiro Vik Muniz (o músico Caetano Veloso cancelou a viagem por problemas de saúde), e os portugueses Pedro Abrunhosa (músico), Rui Chafes, Vhils e Joana Vasconcelos (artistas plásticos), os escritores Gonçalo M. Tavares e José Luís Peixoto e a arquitecta Marta Braga Rodrigues.
No discurso, o Papa pediu aos artistas que fujam da “falsa beleza cosmética”, que muitas vezes é “cúmplice dos mecanismos económicos que geram desigualdades”. Agradecendo aos artistas o facto de eles serem “sentinelas do verdadeiro sentido religioso, por vezes banalizado ou comercializado”, acrescentou: “Sinto que sois aliados de tantas coisas que me são caras, como a defesa da vida humana, a justiça social para os últimos, o cuidado da nossa casa comum, o sentimento de que somos todos irmãos e irmãs.”
Os artistas devem ser uma “consciência crítica da sociedade”, denunciando as desigualdades e o egoísmo. “A arte e a fé não podem deixar as coisas como estão: mudam-nas, transformam-nas, convertem-nas”, disse ainda Francisco, sentado de costas para o fresco do Juízo Final, pintado por Miguel Ângelo no século XVI, no mesmo lugar em que são eleitos os papas.
Artistas: visionários e profetas

O Papa citou um dos seus autores preferidos: o teólogo Romano Guardini (“A Obra de Arte”) escreveu que “o estado em que o artista se encontra enquanto cria é semelhante ao da criança e também ao do vidente”. Comentou Francisco: “Estas duas comparações parecem-me interessantes. Segundo ele, ‘a obra de arte abre um espaço no qual o homem pode entrar, no qual pode respirar, mover-se e lidar com as coisas e os homens, tornados abertos’. É verdade que, quando se trabalha em arte, as fronteiras afrouxam e os limites da experiência e da compreensão alargam-se. Tudo parece mais aberto e disponível. Adquire-se então a espontaneidade da criança que imagina e a acuidade do vidente que apreende a realidade.”
“Os artistas têm a capacidade de sonhar com novas visões do mundo. E isso é importante: novas perspectivas do mundo. A capacidade de introduzir a novidade na história.” Por isso, acrescentou o Papa, Guardini dizia que os artistas “se assemelham a visionários” ou videntes e “são um pouco como os profetas”.
Na mesma perspectiva, referiu ainda a filósofa judia Hannah Arendt, que dizia que próprio do ser humano é “viver para trazer novidade ao mundo”: “Sois aliados do sonho de Deus, sois olhos que observam e sonham. Não basta apenas olhar, é preciso também sonhar”, acrescentou.
Num outro momento, citou a filósofa Simone Weil, nascida judia que depois se aproximou do cristianismo, que escreveu (A Gravidade e a Graça): “A beleza seduz a carne para obter a permissão de passar para a alma.” O Papa comentou a propósito: “A arte toca os sentidos para animar o espírito e fá-lo através da beleza, que é o reflexo das coisas quando são boas, correctas, verdadeiras. É o sinal de que algo tem plenitude: é então que dizemos espontaneamente: ‘Que bonito!’ A beleza faz-nos sentir que a vida se dirige para a plenitude.”
Por isso é que, “na verdadeira beleza, começamos a sentir uma saudade de Deus”, disse ainda o Papa, para acrescentar: “Muitos esperam que a arte regresse mais à beleza. Claro que, como já disse, há também uma beleza fútil, uma beleza artificial e superficial, até enganadora, a da maquilhagem.” E também numa “era de colonização ideológica pelos meios de comunicação social e de conflitos dilacerantes” é importante que os artistas cultivem “o princípio da harmonia”.
Encontro “intenso”

O encontro, organizado pelo Dicastério para a Cultura e a Educação, presidido por D. José Tolentino Mendonça, em colaboração com o Governo do Estado da Cidade do Vaticano, os Museus do Vaticano e o Dicastério para a Comunicação dirigido pelo cardeal português José Tolentino Mendonça, Na abertura, este afirmou, citado pela Ecclesia, que “é preciso relançar a experiência da Igreja como amiga dos artistas, interessada nas questões que o mundo contemporâneo coloca (tanto o atual, pressão do drama, como aqueles tão visionários que indicam novos futuros possíveis) e dispostos a desenvolver um diálogo mais rico e um crescimento de compreensão mútua”.
No final, o escritor José Luís Peixoto, um dos portugueses presentes, descreveu o momento como “intenso: foi intenso logo à partida, porque era uma sala de artistas, muitos deles que há bastante tempo admiro e ao mesmo tempo com o Papa Francisco, nesta ocasião depois da cirurgia”, disse, em declarações à TSF.
“São momentos como este”, que teve com o Papa, “que marcam uma vida”, disse. “Ter oportunidade de apertar a mão, trocar duas palavras com uma figura desta grandeza é algo que realmente nos faz tremer um pouco“.
Em declarações à Ecclesia, o escritor acrescentou ainda: “As palavras que o Papa partilhou connosco foi para nos chamar a atenção para o essencial que, nesta área das artes e comunicação, apesar de subjetiva, tem claras raízes na humanidade e nas questões que nos preocupam desde sempre e, seguramente, para sempre.”