
“A caminhada sinodal que se iniciou recentemente e que já produziu alguns resultados, pelo menos em termos de abertura ao diálogo e de documentos que foram sendo elaborados pelos milhares de grupos que se formaram em Portugal e no mundo, não pode parar.” Foto © Diocese Leiria-Fátima.
Foram momentos de muita esperança os que se viveram na Igreja Católica nos últimos meses, a nível universal, desafiados que foram todos os seus fiéis, sacerdotes e leigos a efectuarem uma reflexão sobre os caminhos que se viveram anteriormente, olhar para tudo o que foi feito e discernir aquilo que a Igreja, no seu conjunto, quer para o futuro. No fundo, tentar perceber, sob o impulso do Espírito Santo, o que é que a Igreja quer ser no meio da sociedade em que está inserida, de que forma pode continuar a sua missão de evangelizar, tudo em busca da criação de um mundo melhor para toda a humanidade.
Isso aconteceu apesar da falta de hábitos de escuta da Igreja, enferma desde há séculos, em que o clericalismo se foi impondo, seguindo o modelo de organização da sociedade civil, onde as hierarquias estão bem definidas na generalidade das instituições que governam os povos. A Igreja foi sendo organizada em pirâmide, com o Papa à cabeça, seguindo-se os bispos, os sacerdotes, religiosos e, finalmente, a grande massa dos fiéis. Estes não passavam de uma imensa multidão, vivendo no anonimato eclesial, sem grande possibilidade de se poder manifestar, na ausência de estruturas de diálogo e que apelassem à participação deles no processo de tomada de decisões, escutando apenas aquilo que de cima era transmitido, quantas vezes meramente por repetição do que os transmissores tinham ouvido de outros, sem direito a tergiversações, assim se pensando que se garantia a força e a unidade da instituição.
Com os documentos dos Papas que, desde o final do século XIX, mas principalmente ao longo do século XX e continuando pelo século actual e o enorme impulso do feliz acontecimento que constituiu o II Concílio do Vaticano, tudo se alterou. E assim tinha de acontecer, pois a Igreja deu-se conta de que estava a perder fiéis e que muitas pessoas se iriam afastando cada vez mais da prática religiosa.
Nas duas últimas décadas, em todo o mundo, e igualmente em Portugal, assistiu-se a um afastamento ainda maior, ficando as igrejas desertas. E esse afastamento não se verifica apenas nas cidades, mas também nas nossas aldeias, abandonadas à sua sorte pela falta de padres que assegurem a vida pastoral e espiritual, ou então, assistidas por sacerdotes idosos, que pouco ou nada podem transmitir de novo às pessoas, sem forças para fazerem melhor, por ignorância ou comodismo. Aos poucos, a mensagem deixou de ser apelativa, em virtude de muitas vezes nada dizer que respeite à vida concreta das pessoas.
Quer se queira, quer não, os escândalos que abalaram e ainda abalam a Igreja também contribuíram e estão a contribuir para o abandono da prática religiosa por parte de muitos fiéis. Não que tenham deixado de se sentir como cristãos. Simplesmente fartaram-se de ouvir sempre as mesmas coisas, onde falta a novidade, a aplicação do Evangelho à vida prática. E onde tem faltado a escuta, o diálogo, o convite à participação na vida da Igreja e a chamada à corresponsabilidade na tomada de decisões sobre os vários aspectos que implica a referida participação na missão da Igreja, segundo o carisma de cada um.
Como tem escrito o cardeal Tolentino Mendonça e resulta das palavras do Evangelho, o Sábado é um instrumento, não é uma finalidade, no sentido de que as pessoas é que contam, não as normas com as quais muitas vezes a Igreja se transformou, inadvertidamente, numa “máquina” de exclusão, ainda segundo o mesmo cardeal português.
Deste modo, em boa hora o Papa Francisco lançou a toda a Igreja o ingente e profundamente necessário desafio para que todos, dentro da Igreja, nos debruçássemos sobre o passado, tentando ver os aspectos que merecem reflexão, com vista a perspectivar o futuro e a encontrarmos os melhores caminhos para continuarmos a levar por diante o mandato de espalharmos o Evangelho e todas as riquezas que ele contém junto de todos os povos.
A caminhada sinodal que se iniciou recentemente e que já produziu alguns resultados, pelo menos em termos de abertura ao diálogo e de documentos que foram sendo elaborados pelos milhares de grupos que se formaram em Portugal [ver 7MARGENS] e muitos mais em todo o mundo, não pode parar.
A Igreja tem de ir ao encontro de todos os que se estão nas periferias da vida, todas as periferias: religiosas, espirituais, políticas, culturais e sociais, no sentido de centrar a sua vida no Evangelho e ao serviço dos que mais precisam dos dons que resultam da vivência da mensagem que nos foi legada há dois mil anos.
E se esta caminhada, em boa hora iniciada, já deu frutos, pois pôs todos os que quiseram participar a falar abertamente sobre os problemas e aquilo que pode e deve ser melhorado, seria bom que não parasse nem ficasse à espera da palavra do Papa, que surgirá apenas no final do Sínodo a realizar no próximo ano em Roma.
Por vezes fica-se com a sensação de que parece haver pouca vontade de ir avançando com mudanças nas áreas onde os problemas foram detectados. E elas são necessárias e, em alguns casos, urgentes.
É que, tal como acontece na sociedade em geral, também em Igreja devemos pensar globalmente, mas agir localmente, porque cada Igreja local, cada paróquia conhece melhor os seus problemas e constrangimentos. Daí que não se deva interromper este processo, esta caminhada sinodal, sob pena de a embalagem ganha se desvanecer e ser atirada mais uma vez para o esquecimento, tal como aconteceu com a inovadora doutrina saída do Concílio Vaticano II, muita da qual não passou do papel, não foi posta em prática, com grande prejuízo para toda a Igreja e principalmente para as pessoas.
Por exemplo, constituiria um convite à adesão de mais cristãos a esta caminhada, se fosse dado conhecimento, a todos os que participaram nos trabalhos da escuta, do resultado desses trabalhos e as conclusões que irão ser enviadas para Roma, como em algumas dioceses (por exemplo, a de Vila Real), está a ser feito.
É tempo de despertar, de agir, naquilo que for necessário e possível. Não se trata de teologia, mas apenas de estruturas, de modos de funcionamento, de formas diferentes de fazer as coisas. Por isso, quanto mais depressa as diferentes comunidades iniciarem os processos de adaptação, de transformação, melhor; e mais depressa se corrigirão os erros ou métodos anquilosados do passado.
António Caseiro Marques é advogado e dirigente da Acção Católica Rural.