
Sem nostalgias, antes com alegria e vivacidade, o filme Paraíso (um dos muitos que fizeram parte do alinhamento do MDOC), é também o retrato de um país onde os velhos escolhem os jardins para sublimarem a solidão.
É quase em clima “non stop” que decorre mais uma edição do MDOC/Festival Internacional de Documentário de Melgaço: quatro filmes em média, mais as manifestações paralelas, exposições, cursos Fora de Campo, Plano Frontal, residências artísticas. Como a temperatura é escaldante e, em alguns dias, chega a rondar 40 graus, a maioria dos participantes, vindos de várias geografias, opta pela sala climatizada da Casa da Cultura e, por lá fica, a apreciar filmes atrás de filmes pelo prazer da viagem e descoberta.
Foi o caso de Paraíso (2021) de Sérgio Tréfaut, um “mergulho na memória” na opinião do cineasta ou “teia sonora”, no olhar de Patrícia Nogueira, cuja obra foi filmada nos jardins do antigo Palácio da Presidência, mais tarde reconvertido no Museu da República do Rio de Janeiro. Por este “jardim das delícias” aparecem, todos os dias, dezenas de homens e mulheres de cabelos brancos, marcados pelo tempo, cheios de histórias. Muitos deles vivem sós e a música faz parte das suas memórias. Enquanto cantam, sentem-se jovens, exibem rostos de alegria e felicidade. E neste espaço rodeado de beleza, uma pequena banda improvisa e acompanha as canções das suas e [nossas vidas], Chico Buarque, Roberto Carlos, Gonzaguinha e mais uns quantos cantores de sambas de encantar. Sem nostalgias, antes com alegria e vivacidade, o filme é também o retrato de um país onde os velhos escolhem os jardins para sublimarem a solidão e simultaneamente, também presta homenagem a muitos dos que iam ao jardim ouvir canções de amor e morreram vítimas da pandemia.
Sem comparações apressadas, Paraíso poderá ter alguma similitude de linguagem com As Canções (2011) do grande cineasta brasileiro Eduardo Coutinho que, nesta edição do MDOC, será objecto de atenções especiais com a exibição de Cabra, Marcado para Morrer, (dia 7, às 10 horas) seguido de debate com Jorge Campos, professor de Cinema e realizador que, a propósito deste filme, escreveu um longo ensaio intitulado A grande aventura do documentário brasileiro.
A obra seguinte também esteve em foco e de certa maneira é premonitória do que está acontecer hoje na Ucrânia, com a invasão das tropas de Putin. Tomorrow Comes Yesterday, de Kirsten Gainet, é um registo que apela a outras memórias (trágicas) sobre a anexação da Crimeia, em 2014, pelas tropas da Rússia e o subsequente genocídio dos Tártaros que viviam na península. “Ninguém queria que esta história fosse contada. Só com muitas dificuldades e ameaças de prisão o documentário foi realizado. E só com a ajuda e partilha de muitos amigos e alguns jornalistas locais foi possível a recolha de imagens, e depois efectuar a sua montagem e realização”, disse, no final do filme, a representante da realizadora. O resultado é conhecido: milhares de casas de ”suspeitos” são invadidas pela polícia de choque, posteriormente condenados e mandados para a prisão sem culpa formada. “O luto une toda uma nação, mas as autoridades continuam a prender cada vez mais Tártaros da Crimeia todos os anos”, escreveu Kirsten Gainet, realizadora e argumentista, membro do Sindicato de Cineastas da Federação Russa. O filme nunca foi exibido na Rússia e na Ucrânia e a realizadora vive na Turquia.
A ausência de Liberdade também está patente no ensaio Mara, de Sasha Kulak, cineasta da Bielorrússia, cuja câmara acompanha as eleições de 2020, mas desta vez num misto de sonho e a realidade em imagens de grande beleza plástica. “Quando cheguei à Bielorrússia não vi imagens das pessoas nas ruas, não vi reportagem, e por isso comecei a imaginar nestas questões e a construir o filme”, disse Sasha Kulak, no debate de perguntas e respostas após a exibição do filme.
Pela noite, esteve em confronto outro registo de grande importância: O Território, de Alex Pritz. Desta vez, a defesa da floresta da Amazónia, uma luta entre os grandes madeireiros e senhores da terra que, com a cobertura política de Balsonaro, vão semeando o pânico e terror, chegando mesmo à morte de um jovem nativo cheio de ilusões e apostado na preservação do “maior pulmão verde do mundo”.
Antes da maratona cinéfila começar, deu-se início no primeiro dia do festival à Oficina de Verão Olhar e Filmar, orientada por Mercedes Álvarez, e no Museu de Cinema inaugurou-se a exposição Cinema Português, pretexto para homenagear Jean-Loup Passek, cujas paredes estão cheias de fotos, dedicatórias, filmes de arquivo dos anos 30 de Oliveira, dezenas de criativos cartazes da fabulosa e única coleção do fundador do Museu de Melgaço e do Festival de La Rochelle. No exterior , estavam 41 graus e na cerimónia não faltaram os bombos para animar a festa.
Com temperaturas “fora de época”, o Festival continua até ao próximo domingo com a exibição de mais uma série de filmes, visitas as exposições e, na secção Fora de Campo, debates e transmissões via streaming sobre Antropologia Visual/Antropologia e Cinema com vários especialistas nacionais e estrangeiros. A oferta hoteleira está esgotada e, num raio de 20 quilómetros, torna-se “missão impossível” encontrar um lugar para pernoitar, em parte devido ao MDOC que, todos os anos, acolhe uma legião de gente interessada pelo documentário e também, pelos turistas e emigrantes que, como é habitual, visitam os seus familiares em Melgaço neste “Querido Mês de Agosto”.