
Projetos foram votados favoravelmente por uma maioria clara de deputados. Foto: Direitos reservados
O Parlamento aprovou na generalidade a despenalização da morte medicamente assistida, com uma maioria a votar favoravelmente as propostas do PS, IL, BE e PAN, que baixam agora à especialidade para preparar uma versão final. Esta é a terceira vez que a Assembleia da República vota a favor da eutanásia, com os deputados a procurarem agora resolver a inconstitucionalidade apontada pelo Tribunal Constitucional e o veto político do Presidente da República. A Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) e o Grupo de Trabalho Inter-Religioso (GTIR) Religiões-Saúde, entre outros, contestaram a decisão do Parlamento, com este último a falar de “obsessão”.
Marcelo Rebelo de Sousa tinha vetado o anterior decreto, em 26 de novembro, apontando o facto de o texto utilizar expressões diferentes na definição do tipo de doenças exigidas e defendendo que o legislador tinha de optar entre a “doença só grave”, a “doença grave e incurável” e a “doença incurável e fatal”. Agora, com a votação na generalidade desta quinta-feira, os partidos vão procurar chegar a um consenso sobre um texto final em sede de especialidade.
O projeto do PS foi o que acolheu mais votos favoráveis (128, com 88 contra e 5 abstenções). Só as abstenções e os votos favoráveis variaram relativamente aos outros três projetos: os da Iniciativa Liberal e do Bloco receberam 127 votos a favor e seis abstenções; e o do PAN recolheu o apoio favorável de 126 deputados, com oito abstenções. Os votos contra nunca se alteraram: 88 – as bancadas do Chega e do PCP, acompanhados de 63 deputados do PSD e sete do PS.
Uma proposta de referendar a eutanásia, avançada pela bancada da extrema-direita do Chega, foi chumbada de forma clara: 147 votos contra a iniciativa, duas abstenções e os votos favoráveis dos deputados extremistas (12) e de 59 parlamentares do PSD.
Antes da votação, realizou-se uma manifestação dos movimentos “pró-vida”, defronte da Assembleia da República. Também previamente à votação, a Associação dos Juristas Católicos (AJC) fez saber em comunicado, enviado ao 7MARGENS, que rejeitava a legalização da eutanásia em Portugal, considerando que os novos projetos entretanto aprovados aproximam o país dos sistemas legais “mais permissivos” nesta matéria.
“Os projetos em discussão são agora claros no sentido do alargamento do campo de aplicação da lei para além das situações de doença terminal e de morte iminente (uma situação que alguns designam como ‘antecipação da morte’), abrangendo também situações de doença incurável (para além das situações de deficiência, já contempladas anteriormente), que seriam compatíveis com o prolongamento da vida por muitos anos”, concretiza a nota.
Com o título “A morte não pode ser resposta”, a nota da AJC reafirma a sua “firme oposição à legalização da eutanásia e do suicídio assistido”, salientando, a propósito dos projetos de lei agora em discussão, que “o alargamento dessa legalização a situações de doença incurável e não terminal, tal como a situações de deficiência, comprova os receios da chamada ‘rampa deslizante’ e representa um salto nesse sentido”
A nota diz ainda que a AJC não aceita “que, a quem sofre de doença incurável ou deficiência, o Estado e os serviços de saúde possam responder com a morte provocada, desistindo de combater e aliviar o seu sofrimento, e desconsiderando essas pessoas em lugar de lhes oferecer uma mensagem de esperança e de solidariedade”.
Uma “obsessão”

Representantes de várias confissões religiosas em Portugal, em 2018, depois da assinatura de uma posição conjunta contra a eutanásia. Foto © Ecclesia
Depois da votação, a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) considerou, em comunicado, que os projetos de lei aprovados “representam um alargamento” para além das situações de “morte iminente, abrangendo também situações de doença incurável e deficiência, o que aproximará a nossa legislação dos sistemas mais permissivos já existentes, que felizmente são muito poucos”.
No comunicado enviado ao 7MARGENS e referido também na Ecclesia, a CEP “reafirma a sua oposição à legalização da eutanásia e do suicídio assistido e distancia-se de iniciativas legislativas que insistem na sua aprovação, nomeadamente os projetos de lei votados hoje na Assembleia da República”. Os bispos acrescentam que diante do mandamento “não matarás” todos ficam protegidos, mas diante da “lei dos homens” que permite ao Estado “tirar a vida”, todos ficam “expostos”.
“A dignidade humana, que deve ser garantida sempre e também no fim da vida, não passa pelo direito a pedir a morte mas pela garantia de todos os cuidados para evitar o sofrimento, como indicam os códigos deontológicos dos profissionais de saúde, reafirmados no contexto das reincidentes iniciativas legislativas de alguns grupos parlamentares pelas respetivas ordens profissionais”, acrescenta o comunicado, no qual os bispos reafirmam que “a morte provocada não pode ser a resposta dada pelo Estado e pelos serviços de saúde às situações de sofrimento. “A resposta deverá ser sempre a do esforço solidário para combater e aliviar a doença e o sofrimento, designadamente através dos cuidados paliativos, ainda não acessíveis à maioria dos portugueses deles necessitada”.
O comunicado da CEP lembra que “com a eutanásia e o suicídio assistido não se combate o sofrimento, suprime-se a vida da pessoa que sofre”, alertando para o “o perigo de que haja doentes, especialmente os mais vulneráveis, que se sintam socialmente pressionados a requerer a eutanásia, porque se sentem 0’a mais’ ou ‘um peso’ em termos familiares e sociais”, propagando a “a cultura do descartável continuamente denunciada pelo Papa Francisco”.
Também o GTIR Religiões-Saúde criticou a decisão parlamentar, dizendo que “a obsessão da Assembleia da República pela eutanásia e pelo suicídio assistido” parece ser “a resposta que a sociedade, por imposição da Assembleia da República, tem para oferecer aos doentes em sofrimento severo e em fim de vida”.
Num comunicado enviado ao 7MARGENS, o Grupo acrescenta: “Apresentar a eutanásia ou o suicídio assistido como resposta social ou avanço civilizacional a alguém que enfrenta um sofrimento insuportável não constitui uma opção de modernidade, mas uma demissão, uma desistência da pessoa, uma violência.” O texto acrescenta: “A desistência de uma pessoa em sofrimento pela sociedade, pelos familiares e/ou pela equipa de cuidados empurra-a para a morte social, em primeiro lugar, pois lhe proíbe a esperança de ser cuidada e acompanhada com afeto e sentir-se digna, e, em segundo, ao suportar sozinha o fardo das angústias, do medo e do sem-sentido, empurra-a necessariamente para a morte física para acabar com a solidão dolorosa e insuportável.”
O GTIR considera ainda que a lei é “contrária à experiência de muitos que se empenham em acompanhar doentes em situação de sofrimento severo e terminal”, já que a “oferta de uma ajuda humana integral por equipas multidisciplinares, dando garantia de não abandono, leva frequentemente o doente a deixar de falar da morte e a querer viver até ao fim”.
Este Grupo reúne representantes da Aliança Evangélica Portuguesa, Comunidade Hindu de Portugal, Comunidade Islâmica de Lisboa, Comunidade Israelita de Lisboa, Igreja Católica, Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (Mórmons), Igreja Ortodoxa da Sérvia, União Budista Portuguesa e União Portuguesa dos Adventistas do Sétimo Dia. O GTIR contesta ainda a urgência na aprovação da lei, tendo em conta que a pandemia “privou milhares de doentes graves de consultas, exames e tratamentos vendo agravada a sua situação clínica”, o Serviço Nacional de Saúde “não está a responder às necessidades da população, sendo particularmente prejudicados os mais frágeis, pobres, idosos e doentes graves” e o facto de não haver “uma rede de cuidados paliativos capaz de dar resposta às necessidades dos doentes em tempo útil de vida”. E conclui, perguntando: “Será que veremos na Assembleia da República a mesma obsessão até que haja uma rede efetiva de cuidados paliativos? Será, ainda, que veremos a mesma obsessão em mexer na lei do Testamento Vital para que as pessoas possam aí afirmar a sua recusa à eutanásia?”