
O Coração Silenciado, criado por “Alice” para vítimas de abuso sexual na Igreja.
“Foi um passo importante, que ajuda a uma maior consciencialização do problema”, diz Alice (nome fictício), sobrevivente de abusos que criou o site Coração Silenciado, dedicado a vítimas de violência sexual na Igreja. Alice reagiu desta forma ao relatório da Comissão Independente (CI) que estudou esta realidade na Igreja Católica em Portugal, apresentado nesta segunda-feira em Lisboa.
Nuno Caiado, primeiro subscritor de uma carta que três centenas de católicos dirigiram, em Outubro de 2021, à Conferência Episcopal, a pedir uma investigação, considera também que com o relatório agora divulgado “a centralidade das vítimas sai reforçada”.
“Passa a ser possível pensar melhor como lidar com elas, como pedir desculpa às que estão vivas, não de um modo difuso ou simbólico, mas concreto”, diz Nuno Caiado, exemplificando algumas coisas que podem ser feitas. Também “o modo de as ressarcir (economicamente se for o caso) e como ajudar a reparar na medida do possível – pois sabe-se que há feridas insusceptíveis de fechar – os seus danos psicológicos através de gestos concretos como proporcionar esquemas psicoterapêuticos prolongados no tempo”, são outras formas que pode assumir esse apoio às vítimas.
Confessando que “não é fácil discernir o que é mais oportuno” destacar da apresentação do documento, Nuno Caiado acrescenta que a divulgação do relatório traduz ainda a necessidade de “haver um esforço tremendo em fazer compreender aos bispos, a todos os leigos católicos, às organizações, a todo o povo de Deus, que estes crimes não são perversões isoladas, mas resultado directo de um modelo de Igreja, formalista e orientada para os procedimentos em vez de estar centrada no Deus da bondade, da justiça e do amor e na vida das pessoas”.
Alice confessa ter ficado “positivamente surpreendida” com a conclusão do relatório, bem como com as sugestões feitas pela CI – nomeadamente, com a ideia de uma comissão que continue o trabalho iniciado, que possa estudar a questão e acompanhar sobreviventes de abuso.
O “apoio a nível da saúde mental” é um dos aspectos em que o acompanhamento se pode traduzir, diz a criadora do Coração Silenciado. Mas também o apoio jurídico pode ser importante, exemplifica, sublinhando a importância do trabalho agora concluído: “Isto pode ajudar outras a ganhar coragem para testemunhar.”
Alice sente que o relatório começou “a pôr o dedo na ferida” e destaca até a importância simbólica de a sessão ter sido transmitida em directo pela generalidade dos meios de comunicação: “Ajuda a chegar a muito mais gente esta temática.”
“O que os testemunhos citados dizem eu sinto, vivi essa experiência, há 25 anos que lido com este horror. Nota-se aqui a busca da verdade, o reconhecimento da verdade”, acrescenta esta sobrevivente.
Sobre um eventual pedido de perdão por parte da Igreja, Alice diz que ele só pode surgir depois de outras coisas acontecerem. “Não basta chegar à comunicação social e pedir desculpa. Era mais importante encontrarem-se com vítimas e ouvi-las, isso seria mais coerente com o mandamento do amor.”
Finalmente, Nuno Caiado destaca ainda que “a comissão trabalhou muitíssimo bem atendendo ao tempo de que dispunha”. A apresentação do relatório mostra ainda “uma consistência técnica e ética que é excelente para a descoberta da verdade histórica, para fazer luz sobre como teremos de enfrentar esta catástrofe”.
A consistência, conclui, “também é importante porque organiza dados que, não sendo novos ou inesperados, os revela de um modo que os tornam irrefutáveis, blindando as prováveis tentativas de descredibilização do relatório pelos sectores mais reaccionários que insistem e negar as evidências”.