
O mosteiro de Lavra Kyiv-Pechersk envolto em polémica entre o Estado ucraniano e as diferentes igrejas ortodoxas. Foto © Michele Ursino
A guerra paralela entre igrejas ortodoxas que se digladiam a propósito da Ucrânia entrou em efervescência nestes últimos dias, com a decisão judicial de passar a efetiva a prisão domiciliária a que estava sujeito o abade de Lavra de Pechersk-Kyiv, o maior, mais importante e simbólico mosteiro ortodoxo ucraniano.
O caso deste mosteiro é apenas o mais notório de uma multiplicidade de casos análogos, um pouco por toda a Ucrânia, especialmente desde a invasão deste país pelo exército russo, em fevereiro de 2022 [ver 7MARGENS]. Nessa altura foi notório o envolvimento e empenho do patriarca de Moscovo e primaz da Igreja Ortodoxa Russa, Cirilo, na bênção e legitimação dessa assim designada, por Putin, “operação militar especial”.
Quando se tornou evidente a capacidade de resistência dos ucranianos, os hierarcas da Igreja Ortodoxa da Ucrânia, integrada até então no Patriarcado de Moscovo, tomaram decisões que visavam alegadamente cortar laços com Moscovo. Mas vários deles foram vistos em atos públicos do poder político russo e, por outro lado, as autoridades ucranianas disseram ter encontrado provas de que o vínculo com os ortodoxos russos continuava operacional. Um dos locais em que esses indícios terão sido encontrados foi o mosteiro de Pechersk-Kyiv.
A terceira peça do puzzle

Há um terceiro ator, neste puzzle, que assume aqui um papel decisivo: sobretudo, com as grandes manifestações contra a corrupção e a favor da integração europeia entre 2013 e 2014, ganha forma naquele país um movimento de unificação de igrejas ortodoxas locais que desejavam libertar-se do vínculo com Moscovo. Esse movimento viria a ser formalizado na Igreja Ortodoxa Ucraniana em meados de dezembro de 2018, reconhecida como autocéfala nos primeiros dias de 2019, pelo Patriarca Bartolomeu de Constantinopla.
Esta Igreja passou de imediato a ser considerada cismática por Moscovo, em contraposição com a ‘canónica’, ou seja, aquela que foi tradicionalmente sufragânea da Igreja Ortodoxa Russa. Mas era ela que, na situação criada pela invasão, surgia perante vastos setores da população como a única que não poderia ser suspeita de fazer jogo duplo. Fosse por pressão das autoridades locais ou do parlamento da Ucrânia, fosse por movimentações das populações, num número significativo de paróquias e de mosteiros, começou a haver ocupações de espaços religiosos e mesmo, em alguns casos, perseguição de clérigos ortodoxos suspeitos de estar do lado dos russos ou não serem suficientemente claros quanto ao lado de quem se posicionavam.
No caso de Lavra de Pechersk-Kyiv, foram vários os episódios protagonizados por serviços dependentes do Governo no sentido de forçar o despejo dos monges, como o 7MARGENS noticiou.
As autoridades, que detêm a posse dos imóveis, acusavam os responsáveis religiosos de maltratarem os espaços, nuns casos, de retirarem recheio, noutros casos, ou mesmo de deterem propaganda pró-Moscovo.
A detenção (domiciliária) do abade e metropolita Pavel, no início de abril deste ano, foi uma forma de se tentar decapitar o mosteiro e mais facilmente o controlar. Mas nas várias tentativas de entrar nas instalações os executores de ordens sempre foram impedidos, incluindo por fiéis que se concentravam nas imediações. Foi visível, por outro lado, da parte do Governo ucraniano, o cuidado de não ocupar o mosteiro à força, de forma violenta.
Quando, em 14 de julho, um juiz mandou encarcerar o abade, não sendo claros os argumentos que pesaram neste agravamento da situação do detido, significativamente foi o Patriarca de Moscovo quem se lançou numa série de iniciativas para denunciar não apenas o que considera ser uma decisão judicial “injusta”. Para ele, o propósito foi “obviamente ditado pelas autoridades ucranianas”, para “intimidar os fiéis, forçá-los a desistir de defender a sua liberdade religiosa e os seus santuários”.
Cirilo: “Lutar pela Pátria, pela Igreja”

Cirilo dirigiu-se, enquanto primaz da Igreja Ortodoxa Russa, aos dirigentes máximos das igrejas ortodoxas locais, da Igreja Católica, da Igreja Copta, da Comunidade Anglicana, do Conselho Mundial das Igrejas, bem como das Nações Unidas, da OSCE, do Conselho da Europa, do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, para denunciar que “um líder religioso não pode nem deve ser sujeito a tais medidas repressivas por causa das suas convicções religiosas”.
Para a Igreja Ortodoxa Russa, ações como “retirar, à força e ilegalmente, o Pechersk Lavra de Kyiv da jurisdição da Igreja Ortodoxa Ucraniana” têm como objetivos estratégicos, a perseguição “em grande escala” e mesmo a “liquidação” de Igreja Ortodoxa Ucraniana”.
Numa reunião da Conferência Episcopal do Patriarcado de Moscovo, ocorrida esta semana, o Patriarca Cirilo traçou um quadro negro para a ortodoxia.
Para ele, se as autoridades ucranianas perseguem a Igreja Ortodoxa pró-russa, os dirigentes do Patriarcado de Constantinopla, “cegos pela sede de satisfazer interesses e ambições particulares, tornaram-se um dos instrumentos das forças políticas hostis à Ortodoxia”. Até os católicos gregos, que são minoritários na Ucrânia, se tornaram “um dos beneficiários finais de numerosas apreensões ilegais”, “identificaram-se totalmente com a agenda nacionalista” e “tornaram-se cúmplices das autoridades ucranianas na implementação da sua política discriminatória em relação à Igreja Ortodoxa canónica”.
Cirilo dificilmente podia ser mais expressivo, quanto ao seu estado de espírito, do que nestas palavras dirigidas aos seus bispos, esta semana: “Vocês e eu temos de seguir com firmeza o que o Senhor nos destinou para fazer no sentido de manter o nosso país, o nosso povo e, através destes, talvez o mundo inteiro, longe do domínio do demónio, da decadência e da destruição. Nunca disse estas palavras, mas vou dizê-las agora: os tempos estão muito inquietantes. Hoje, temos todos de reconhecer a nossa vocação e juntarmo-nos à luta. Lutar pela Pátria, pela Igreja”.
Dois padres greco-católicos desaparecidos

Entretanto, continuam em parte incerta dois padres greco-católicos que foram detidos no final de 2022 pelo exército russo, ignorando-se se estão vivos ou mortos.
Trata-se dos padres Ivan Levytsky e Bohdan Heletta, da cidade portuária de Berdjansk, no sudeste da Ucrânia, que foram detidos sob acusação de terem preparado um “ato terrorista”. Desde então, têm estado detidos em local desconhecido.
Estas informações foram dadas à Ajuda à Igreja que Sofre (AIS) pelo bispo auxiliar do exarcado greco-católico de Donetsk, Maksym Rjabucha, que sublinhou que, “apesar das orações, dos protestos e dos esforços da Igreja Católica, até hoje não há notícias dos dois“. A Igreja Greco-Católica diz ter informações de que os padres detidos estão a ser torturados. Além disso, um dos padres sofre de diabetes grave.
O exarcado de Donetsk, a diocese greco-católica mais oriental da Ucrânia, tem terras que foram ocupadas ou fortemente disputadas desde o início da guerra, incluindo as regiões de Luhansk, Zaporizhia e Dnipro.
Segundo o jornal Rjabucha, citado pela AIS, os padres foram expulsos dessas regiões. No entanto, graças às redes sociais, continua a haver um contacto regular com as zonas ocupadas; os padres dão apoio espiritual aos residentes encurralados através de orações ou realizam serviços religiosos por videoconferência.