Ciclo da Natividade

Paula Rego e os quadros de Belém

| 9 Jun 2022

Quatro dos oito temas do “Ciclo da Vida da Virgem Maria”, de Paula Rego, onde se vê “Pietá” (o segundo à direita). Da esquerda para a direita, na Capela do Palácio de Belém, em Lisboa, veem-se ainda “Fuga para o Egito”, “Lamentação aos pés da Cruz” e “Assunção”. Foto © José Manuel/Museu da Presidência da República.

Quatro dos oito temas do “Ciclo da Vida da Virgem Maria”, de Paula Rego, onde se vê “Pietá” (o segundo à direita). Da esquerda para a direita, na Capela do Palácio de Belém, em Lisboa, veem-se ainda “Fuga para o Egito”, “Lamentação aos pés da Cruz” e “Assunção”. Foto © José Manuel/Museu da Presidência da República.

 

Tive o gosto de conhecer Paula Rego no Palácio de Belém por duas vezes: em almoço que o Presidente Jorge Sampaio promoveu para homenagear Paula Rego e após o qual fiquei a contemplar os quadros e escrevi para o Público um artigo (seria inserido no livro Narração de autêntica religiosidade. In Paula Rego: Ciclo da vida da Virgem Maria. Capela do Palácio de Belém. Lisboa: Museu da Presidência da República, 2006, pp. 34-39, bem como no meu livro Estudos de iconografia cristã). A outra vez foi na despedida do Presidente, com inauguração do retrato, realizado por Paula Rego. Convidou-me para dizer breves palavras sobre os quadros e como verifiquei que todos os muitos convidados tinham na mão um postal com a Pietà, apenas comentei essa obra.

De facto, no espaço do antigo oratório do Palácio de Belém, a imaginação criativa de Paula Rego (1935-2022) recontou as histórias de Maria de Nazaré, em oito quadradinhos [54×52 cm]. São imagens que necessitam de contemplação, de que deixemos pousar o nosso olhar nos quadros até sermos surpreendidos pela visão das pinturas sobre nós. Consciente de que está lá muito mais do que eu consegui descortinar, na brevidade do convívio com a obra, aqui deixo algumas impressões.

A obra está colocada em espaço estreito, orientado para um altar encostado à parede e encimado por uma pintura com a representação clássica do Presépio, tema muito apropriado para o título da casa. A procura da luz convida-nos a olhar o teto, de decoração leve e airosa. O lugar hoje não é litúrgico, mas está integrado num circuito museológico. Os oito pequenos quadros de Paula Rego distribuem-se quatro de cada lado das paredes laterais, emoldurados por um breve e singelo bordo dourado. O ciclo temático da Vida de Maria de Nazaré desenvolve-se na seguinte ordem: do lado direito, a partir do altar: Anunciação, Parto de Maria, Adoração do Menino Jesus e Purificação no Templo; do outro lado, a partir do fundo: Fuga para o Egipto, Lamentação ao pé da cruz, Pietà e Assunção.

Apenas comento os dois últimos quadros: o da Pietà, que atinge, a meu ver, o auge de todo o conjunto, e o da Assunção. 

Na Pietà, Maria está sentada, de saia roxa, agarrando com as mãos o peito do filho, apertado ao seu colo. O corpo muito hirto do jovem filho (o modelo de 12 anos é amigo da neta) ocupa a diagonal do espaço inferior. Maria imagina ter nos braços o sempre ‘menino de sua mãe’ até aceitar com coragem que o servo da liberdade jaz no seu colo. A cor sanguínea da metade superior do quadro dramatiza, de modo sublime, a inquietação da hora. Nesse fundo, a cabeça de Maria, deitada para trás, atira no olhar um porquê terrível para o Alto que a lançou na aventura deste projeto. Daí veio a mensagem para uma maternidade carregada de salvação, afinal ali impiedosamente contradita. A aurora do fundo adivinha o oitavo dia da nova criação.

Na Assunção vemos um anjo muito jovem, cujo modelo parece ser o mesmo da anterior figura de Cristo, que avança pelo céu, com a figura de Maria pousando as costas nas suas, mas hirta e vestida de negro como senhora de idade, com os braços abertos em abandono incrível, como foi a disponibilidade revelada na aceitação da mensagem do quadro em frente (Anunciação). Há uns tons de verde, semeados no quadro, que me convocam para a renovação da esperança. Uma mulher forte acolheu o mistério da vida com totalidade. Teologicamente, quem atira Maria para o céu é Cristo. Cristo, de facto, é o anjo, o mensageiro de uma salvação que passa pelo dom corajoso da vida e chega ao rasgo eterno.

Quatro dos oito temas do “Ciclo da Vida da Virgem Maria”, de Paula Rego. Da esquerda para a direita: “Anunciação”, “Natividade”, “Adoração” e “Purificação no Templo”. Lisboa, Palácio Nacional de Belém, Capela. Foto © José Manuel/Museu da Presidência da República.

Quatro dos oito temas do “Ciclo da Vida da Virgem Maria”, de Paula Rego. Da esquerda para a direita: “Anunciação”, “Natividade”, “Adoração” e “Purificação no Templo”. Lisboa, Palácio Nacional de Belém, Capela. Foto © José Manuel/Museu da Presidência da República.

 

Paula Rego atinge, com este ciclo mariano, uma provocante transparência religiosa, onde o entusiasmo da criança inunda de imaginação as cenas narradas e onde as feridas da vida espalham inocência livre e desajeitada. Claro exercício ascético é este de condensar a sua história nos rostos, nas expressões, nos gestos e nas vestes das figuras selecionadas, em amalgamado jogo de abertura a uma transcendência percebida na encarnação histórica, como é a cristã. 

A transparência da autêntica religiosidade deste ciclo é, a meu aviso, um passo feliz na difícil tarefa de representar e comunicar o mistério do ser humano. Inquieta-nos sobre o sentido da vida e põe-nos no umbral do Mistério, atraídos por uma beleza interpelante.

Carlos Moreira Azevedo é bispo, delegado para os Bens Culturais no Dicastério Cultura e Educação, do Vaticano, e autor do livro Estudos de iconografia cristã. 

 

KAICIID reúne líderes religiosos e comunitários para promover paz em Cabo Delgado

Encontro em Pemba

KAICIID reúne líderes religiosos e comunitários para promover paz em Cabo Delgado novidade

O Centro Internacional de Diálogo – KAICIID, com sede em Lisboa, dinamizou no final da semana passada um encontro de “sensibilização inter-religiosa” em Pemba (capital da província de Cabo Delgado, Moçambique), no qual reuniu membros das comunidades locais, líderes religiosos e organizações da sociedade civil. Deste encontro saíram compromissos a curto e longo prazo de promoção do “diálogo entre líderes religiosos e decisores políticos como ferramenta de prevenção de conflitos” naquela região.

O “caso” frei Bernardo de Vasconcelos: 100 anos da sua vocação monacal e uma carta

O “caso” frei Bernardo de Vasconcelos: 100 anos da sua vocação monacal e uma carta novidade

Vem isto a propósito de uma efeméride que concerne o jovem Frei Bernardo de Vasconcelos (1902-1932), monge poeta a quem os colegas de Coimbra amavam chamar “o Bernardo do Marvão”, nome pelo qual era conhecido nas vestes de bardo, natural de São Romão do Corgo, em Celorico de Basto, Arquidiocese de Braga, que a Igreja declarou Venerável e que, se Deus quiser (e quando quiser), será beatificado e canonizado. (Pe Mário Rui de Oliveira)

Apoie o 7MARGENS e desconte o seu donativo no IRS ou no IRC

Breves

 

“Em cada oportunidade, estás tu”

Ajuda em Ação lança campanha para promover projetos de educação e emprego

“Em cada oportunidade, estás tu” é o mote da nova campanha de Natal da fundação Ajuda em Ação, que apela a que todos os portugueses ofereçam “de presente” uma oportunidade a quem, devido ao seu contexto de vulnerabilidade social, nunca a alcançou. Os donativos recebidos revertem para apoiar os programas de educação, empregabilidade jovem e empreendedorismo feminino da organização.

Agenda

Fale connosco

Autores

 

Pin It on Pinterest

Share This