
Quatro dos oito temas do “Ciclo da Vida da Virgem Maria”, de Paula Rego, onde se vê “Pietá” (o segundo à direita). Da esquerda para a direita, na Capela do Palácio de Belém, em Lisboa, veem-se ainda “Fuga para o Egito”, “Lamentação aos pés da Cruz” e “Assunção”. Foto © José Manuel/Museu da Presidência da República.
Tive o gosto de conhecer Paula Rego no Palácio de Belém por duas vezes: em almoço que o Presidente Jorge Sampaio promoveu para homenagear Paula Rego e após o qual fiquei a contemplar os quadros e escrevi para o Público um artigo (seria inserido no livro Narração de autêntica religiosidade. In Paula Rego: Ciclo da vida da Virgem Maria. Capela do Palácio de Belém. Lisboa: Museu da Presidência da República, 2006, pp. 34-39, bem como no meu livro Estudos de iconografia cristã). A outra vez foi na despedida do Presidente, com inauguração do retrato, realizado por Paula Rego. Convidou-me para dizer breves palavras sobre os quadros e como verifiquei que todos os muitos convidados tinham na mão um postal com a Pietà, apenas comentei essa obra.
De facto, no espaço do antigo oratório do Palácio de Belém, a imaginação criativa de Paula Rego (1935-2022) recontou as histórias de Maria de Nazaré, em oito quadradinhos [54×52 cm]. São imagens que necessitam de contemplação, de que deixemos pousar o nosso olhar nos quadros até sermos surpreendidos pela visão das pinturas sobre nós. Consciente de que está lá muito mais do que eu consegui descortinar, na brevidade do convívio com a obra, aqui deixo algumas impressões.
A obra está colocada em espaço estreito, orientado para um altar encostado à parede e encimado por uma pintura com a representação clássica do Presépio, tema muito apropriado para o título da casa. A procura da luz convida-nos a olhar o teto, de decoração leve e airosa. O lugar hoje não é litúrgico, mas está integrado num circuito museológico. Os oito pequenos quadros de Paula Rego distribuem-se quatro de cada lado das paredes laterais, emoldurados por um breve e singelo bordo dourado. O ciclo temático da Vida de Maria de Nazaré desenvolve-se na seguinte ordem: do lado direito, a partir do altar: Anunciação, Parto de Maria, Adoração do Menino Jesus e Purificação no Templo; do outro lado, a partir do fundo: Fuga para o Egipto, Lamentação ao pé da cruz, Pietà e Assunção.
Apenas comento os dois últimos quadros: o da Pietà, que atinge, a meu ver, o auge de todo o conjunto, e o da Assunção.
Na Pietà, Maria está sentada, de saia roxa, agarrando com as mãos o peito do filho, apertado ao seu colo. O corpo muito hirto do jovem filho (o modelo de 12 anos é amigo da neta) ocupa a diagonal do espaço inferior. Maria imagina ter nos braços o sempre ‘menino de sua mãe’ até aceitar com coragem que o servo da liberdade jaz no seu colo. A cor sanguínea da metade superior do quadro dramatiza, de modo sublime, a inquietação da hora. Nesse fundo, a cabeça de Maria, deitada para trás, atira no olhar um porquê terrível para o Alto que a lançou na aventura deste projeto. Daí veio a mensagem para uma maternidade carregada de salvação, afinal ali impiedosamente contradita. A aurora do fundo adivinha o oitavo dia da nova criação.
Na Assunção vemos um anjo muito jovem, cujo modelo parece ser o mesmo da anterior figura de Cristo, que avança pelo céu, com a figura de Maria pousando as costas nas suas, mas hirta e vestida de negro como senhora de idade, com os braços abertos em abandono incrível, como foi a disponibilidade revelada na aceitação da mensagem do quadro em frente (Anunciação). Há uns tons de verde, semeados no quadro, que me convocam para a renovação da esperança. Uma mulher forte acolheu o mistério da vida com totalidade. Teologicamente, quem atira Maria para o céu é Cristo. Cristo, de facto, é o anjo, o mensageiro de uma salvação que passa pelo dom corajoso da vida e chega ao rasgo eterno.

Paula Rego atinge, com este ciclo mariano, uma provocante transparência religiosa, onde o entusiasmo da criança inunda de imaginação as cenas narradas e onde as feridas da vida espalham inocência livre e desajeitada. Claro exercício ascético é este de condensar a sua história nos rostos, nas expressões, nos gestos e nas vestes das figuras selecionadas, em amalgamado jogo de abertura a uma transcendência percebida na encarnação histórica, como é a cristã.
A transparência da autêntica religiosidade deste ciclo é, a meu aviso, um passo feliz na difícil tarefa de representar e comunicar o mistério do ser humano. Inquieta-nos sobre o sentido da vida e põe-nos no umbral do Mistério, atraídos por uma beleza interpelante.
Carlos Moreira Azevedo é bispo, delegado para os Bens Culturais no Dicastério Cultura e Educação, do Vaticano, e autor do livro Estudos de iconografia cristã.