A viagem do Papa ao Iraque que se inicia esta sexta-feira, 5, é histórica por várias razões: é a primeira de um líder católico ao país e à “terra de Abraão”, é a primeira de Francisco depois do início da pandemia, inclui o primeiro encontro com um líder muçulmano xiita e a primeira celebração num rito caldeu. E é, sem dúvida, a mais perigosa em termos de segurança. Ou, corrigindo, uma das mais interessantes…

O Papa quer levar ao Iraque “o carinho afectuoso de toda a Igreja.” Foto: Crianças iraquianas a agradecer pinturas oferecidas por crianças australianas. © ACN-Portugal.
Uma viagem para ajudar a propor dinâmicas de pacificação numa sociedade devastada pela guerra, incentivar ao diálogo inter-religioso e peregrinar ao “antigo e extraordinário berço da civilização”, que é o Iraque. Ali se pode dizer que se iniciou a história bíblica, com Abraão, o patriarca de judeus, cristãos e muçulmanos. Nesta que é a sua 33ª viagem fora de Itália e a primeira desde o início da pandemia, o Papa Francisco não deixará também de apelar fortemente a que os cristãos regressem às casas, cidades e país de onde muitos fugiram.
Francisco “entrou” no Iraque já nesta quinta-feira, dia 4 (embora só aterre nesta sexta às 11h de Lisboa na capital iraquiana) com uma mensagem gravada em vídeo e dirigida aos iraquianos. Apresentando-se como “peregrino penitente”, “peregrino de paz” e “peregrino de esperança”, afirmou: “Vou como peregrino, como peregrino penitente, para implorar perdão e reconciliação do Senhor depois de anos de guerra e terrorismo, para pedir a Deus consolo para os corações e cura para as feridas.”
E que feridas! Invasão dos aliados ocidentais liderados pelos Estados Unidos, em 2003, contra o regime do então Presidente Saddam Hussein, fortemente contestada pelo então Papa João Paulo II; um clima de guerra civil entre muçulmanos xiitas e sunitas que se seguiu à derrota de Saddam; revoltas no Curdistão, que há muito luta pela autonomia e independência; o aparecimento do auto-designado Estado Islâmico (Daesh), a reboque da guerra na Síria, que ocupou importantes zonas do território – sobretudo na planície de Nínive, onde residia a maior parte dos cristãos, intensamente perseguidos por aquele grupo.
Pelo meio disso, um enorme êxodo dos cristãos do país: em 2003, antes da invasão pelos militares dos EUA e aliados ocidentais, havia cerca de 1,4 milhões; hoje, eles serão cerca de 250 mil, praticamente 1/6 do que eram há menos de duas décadas.
“Sinto-me honrado por encontrar uma Igreja mártir: obrigado pelo vosso testemunho”, diz o Papa na sua mensagem, dirigindo-se especificamente aos cristãos. “Quero levar-vos o carinho afectuoso de toda a Igreja, que está solidária convosco e com o Médio Oriente atormentado e vos anima a prosseguir.”
“Sois todos irmãos, uma única família”

Hoshang Farooq, muçulmano de Qadish, Amedi, no Curdistão (esqª), da equipa do JRS no Curdistão, com dois outros colegas cristãos (2017 em Araden). Foto © Irene Guia
A mensagem retoma o lema desta viagem, retirado de uma frase do Evangelho segundo Mateus: “Vós sois todos irmãos.” “Sim, vou como peregrino de paz mendigando fraternidade, animado pelo desejo de rezarmos juntos e caminharmos juntos, incluindo os irmãos e irmãs doutras tradições religiosas, sob o signo do pai Abraão que reúne numa única família muçulmanos, judeus e cristãos”, afirma Francisco.
A ideia da fraternidade completa-se com a referência do Papa aos yazidis, um dos grupos mais massacrados pelo Daesh: “Nestes anos, muito pensei em vós; em vós que tanto sofrestes, mas não vos deixastes abater. Em vós, cristãos, muçulmanos; em vós, povos… como o povo yazidi, os yazidis que sofreram tanto, tanto; sois todos irmãos, todos. Agora vou à vossa bendita e ferida terra como peregrino de esperança.”
O Papa manifesta ainda o desejo de há muito encontrar os iraquianos, ver os seus rostos e visitar uma terra que é um “antigo e extraordinário berço de civilização”. No programa da viagem, incluem-se quer a região de Ur da Caldeia, a sul, de onde saiu Abraão, quer a planície de Nínive, a norte – onde existiram grandiosos palácios e a fabulosa Porta de Ishtar (divindade local do segundo milénio antes de Cristo), hoje exposta no Museu Pérgamo, em Berlim. A região tem como capital a cidade de Mossul, uma das mais martirizadas pelo Daesh, conforme já foi descrito num trabalho do jornalista José Manuel Rosendo publicado no 7MARGENS.
“Em Nínive, ressoou a profecia de Jonas, que impediu a destruição [da cidade] e levou uma nova esperança, a esperança de Deus. Deixemo-nos contagiar por esta esperança, que anima a reconstruir e recomeçar”, afirma o Papa na mensagem.
Referindo-se ainda ao sofrimento do país, invoca por duas vezes a figura de Abraão: “Não nos rendamos à vista do mal que se difunde: as antigas fontes de sabedoria das vossas terras apontam para outra direcção, isto é, para fazer como Abraão que, apesar de deixar tudo, nunca perdeu a esperança; e, confiando em Deus, deu vida a uma descendência numerosa como as estrelas do céu. Queridos irmãos e irmãs, contemplemos as estrelas. Nelas, está a nossa promessa.”
Ao concluir, refere ainda: “Milénios atrás, Abraão começou o seu caminho; hoje cabe a nós continuá-lo, com o mesmo espírito, percorrendo juntos os caminhos da paz! (…) E a vós todos peço para fazerdes o mesmo que Abraão: caminhar na esperança e nunca deixar de contemplar as estrelas.”
Terrorismo e pandemia, riscos ponderados
Há riscos na viagem, que Francisco quis manter depois de já ter estado prevista por duas vezes: : o terrorismo, que não largou ainda o país viagem, e que leva a severas medidas de segurança (10 mil agentes nas ruas); e a pandemia, num momento em que os números crescem de novo, depois de terem estado em queda entre meados de Outubro e meados de Janeiro. Os últimos dados (de dia 3, quarta-feira) registavam 5.173 novos casos e 25 mortos.
Apesar das críticas de alguns especialistas à realização da viagem, o próprio Papa não queria adiá-la de novo. As medidas de segurança foram garantidas, defende o Vaticano, com a limitação do acesso a lugares de encontro público e as deslocações de Francisco a serem feitas por via aérea. E, sobretudo, o Papa não queria “decepcionar segunda vez” os iraquianos: em 1999-2000, João Paulo II quis visitar o país, mas os Estados Unidos desaconselharam e disseram que não havia condições de segurança, acabando Saddam por vetar a viagem.
Na sua mensagem, o Papa também se refere às circunstâncias actuais: “Nestes duros tempos de pandemia, ajudemo-nos a reforçar a fraternidade, para construir juntos um futuro de paz; juntos, os irmãos e as irmãs de cada tradição religiosa”, diz.
A propósito, o porta-voz do Vaticano, Matteo Bruni, afirmou que o importante é que os iraquianos possam acompanhar Francisco pela televisão e “saber que o Papa está ali por eles, levando uma mensagem de que é possível ter esperança mesmo em situações mais complicadas”. Citado pelo Crux, acrescentou que os riscos foram medidos e que era necessário que os iraquianos sintam o acto de amor do Papa. E, a avaliar pelos testemunhos recolhidos pela irmã Irene Guia, que trabalhou no Curdistão com refugiados e publicados há dias pelo 7MARGENS, muitos iraquianos estarão sintonizados com esta perspectiva.
Encontro com Ali Sistani e uma liturgia em caldeu

O ayatollah Ali al-Sistani (esqª), líder dos muçulmanos xiitas do Iraque, com o ayatollah Al-Khoi. Foto: Faizhaider/Wikimedia Commons
Pode dizer-se que o programa tem três etapas distintas, uma por dia: esta sexta-feira será o dia político e institucional: primeiro-ministro, Presidente da República, autoridades e corpo diplomático e, finalmente, bispos, religiosos e catequistas; sábado é para os encontros inter-religiosos; domingo será para os mártires: cristãos, yazidis, curdos… Uma oração pelas vítimas da guerra e uma visita à comunidade de Qaraqosh na catedral da Imaculada Conceição, em fase de reconstrução, são os dois actos simbólicos marcantes, além da missa em Erbil. O regresso a Roma está previsto para segunda-feira de manhã.
No sábado, destaca-se o encontro com o grande ayatollah Ali Sistani, 91 anos, líder espiritual dos muçulmanos xiitas iraquianos, a maioria no país (cerca de 64 por cento, o dobro dos muçulmanos sunitas). O Papa vai de Bagdad expressamente para Najaf, encontra-se com Ali Sistani em sua casa e parte, de novo em avião, para Nassiriya. Aqui, na planície de Ur, decorre um encontro inter-religioso, com cristãos de várias denominações, judeus, muçulmanos sunitas e xiitas, yazidis…
Estes dois únicos pontos da agenda de sábado, antes da missa em Bagdad, são uma forma de abrir mais um canal de diálogo entre cristãos e muçulmanos: há dois anos, Francisco encontrou-se com o imã sunita Al Tayyeb, do Cairo, com quem assinou a Declaração sobre a Fraternidade Humana – que o Papa desenvolveu na sua encíclica Fratelli Tutti, publicada em Outubro. Agora, com Ali Sistani, Francisco alarga aos xiitas as possibilidades de diálogo entre as duas grandes tradições religiosas do mundo.
A missa que Francisco presidirá em Bagdad, sábado às 15h (hora de Lisboa) será celebrada em rito caldeu. No domingo, em Erbil (13h de Lisboa) haverá também textos em caldeu, curdo e árabe e ambas terão limitações de acesso e podem ser acompanhadas através da rede vídeo do Vatican Media. Estes detalhes revelam também a importância do reconhecimento das fortes tradições cristãs espirituais, litúrgicas e teológicas daquela região do mundo.
O porta-voz do Vaticano resumiu o significado e importância destes quatro dias de alto risco do Papa Francisco: “Eu não entraria numa competição sobre as viagens mais arriscadas, mas diria que esta é certamente uma das mais interessantes.”