
Há “feridas duradouras”, adjetiva a síntese, “infligidas não apenas por membros individuais da Igreja, mas muitas vezes pela própria instituição” nos EUA: os abusos sexuais e a forma como este assunto foi gerido pelos bispos e outras lideranças, “minou a confiança na hierarquia” e “a integridade moral da Igreja”. Na imagem de arquivo (2019), bispos americanos reunidos em assembleia. Foto © Conferência dos Bispos Católicos dos EUA.
A “Síntese Nacional do Povo de Deus nos Estados Unidos da América” (EUA), relativa ao processo sinodal na sua fase diocesana, foi enviada esta semana para o Vaticano. Foi provavelmente a última e já bastante fora dos prazos pré-estabelecidos. Mas não se pode dizer que não se aprenda, com a sua leitura, muitos aspetos interessantes da Igreja Católica daquele país. Desde logo, porque muitos dos que participaram dizem que pela primeira vez se sentiram ouvidos pela Igreja.
É necessário sublinhar alguns números, que figuram na própria síntese, para se compreender o contexto. Em primeiro lugar, existem nos Estados Unidos cerca de 230 milhões de habitantes e calcula-se que 67 milhões são católicos. Destes participaram em iniciativas relacionadas com o Sínodo 700 mil, o que dá à roda de 1 por cento. Por outro lado, para se aquilatar da envergadura do trabalho de análise que teve a equipa de elaboração da síntese nacional, importa referir que foram produzidas 22.000 sínteses diocesanas. É certo que houve pelo meio um trabalho de síntese ao nível de cada uma das 15 regiões administrativas em que a Igreja se estrutura, cada uma das quais agrupa um certo número de dioceses. Ainda assim, a tarefa foi gigantesca e confere ao texto nacional um inquestionável ‘peso’ e significado.
Uma dimensão interessante deste relatório final é que começa por dizer que o Sínodo demonstrou as “alegrias, esperanças e feridas” partilhadas pelos membros da Igreja nos Estados Unidos.
E as “feridas duradouras”, como adjetiva o documento, “infligidas não apenas por membros individuais da Igreja, mas muitas vezes pela própria instituição”, são os abusos sexuais e a forma como, em muitos casos, este assunto foi gerido pelos bispos e outras lideranças, o que “minou a confiança na hierarquia” e “a integridade moral da Igreja”; são o desgaste da pandemia do coronavírus, que levou ao abandono e solidão “de muitos, jovens e idosos em particular”; são o sentimento de que a Igreja nos EUA está “profundamente dividida” em torno de várias matérias, eclesiais e políticas, deixando-se contaminar pela polarização na sociedade [algumas sínteses regionais sublinham as divisões entre bispos e “mesmo de alguns bispos individuais com o Santo Padre, como uma fonte de grave escândalo”; e são, finalmente a ferida duradoura da marginalização na e pela Igreja.
Neste último aspeto, referem-se dois grandes grupos: o primeiro inclui aqueles marginalizados que se tornam vulneráveis pela sua falta de poder social e/ou económico, como as comunidades de imigrantes; minorias étnicas; os indocumentados; etc. São incluídas aqui as mulheres, “cujas vozes são frequentemente marginalizadas nos processos de tomada de decisão da Igreja”: as mulheres que trabalham em paróquias disseram que se sentiam “desvalorizadas, mal pagas, não apoiadas na procura de formação, trabalhavam longas horas e careciam de bons modelos para o autocuidado”.
O segundo grupo inclui aqueles que são marginalizados porque as circunstâncias das suas próprias vidas são vistas como impedimento à plena participação na vida da Igreja: membros da comunidade LGBTQ+, pessoas que se divorciaram ou que se casaram novamente sem declaração de nulidade, bem como indivíduos que se casaram no civil, mas nunca se casaram na Igreja.
A síntese dá conta de uma grande preocupação sobre como responder às necessidades desses diversos grupos. Mais amplamente, acerca dos vários tipos de “feridas” enunciados, os cristãos consultados exprimiram “uma profunda fome de cura e o forte desejo de comunhão, comunidade e sentimento de pertença”.
Como aconteceu nas sínteses de muitos outros países, há um conjunto de temas e problemas que foram suscitados nas paróquias e nas dioceses, bem como em movimentos, associações e institutos de vida consagrada, relacionados com o papel dos leigos e particularmente das mulheres, a situação do ministério presbiteral, a governação da vida da Igreja, a formação, etc.
Um destaque especial é dado à promoção de “uma Igreja mais acolhedora, onde todos os membros do Povo de Deus possam encontrar acompanhamento no caminho”. As consultas sinodais mencionaram várias áreas em que existia “uma tensão entre como caminhar com as pessoas mantendo-se fiel aos ensinamentos da Igreja”, refere o documento síntese da Igreja dos EUA.
“As pessoas – vinca ainda o texto – notaram que a Igreja parece priorizar a doutrina sobre as pessoas, as regras e regulamentos sobre a realidade vivida. As pessoas querem que a Igreja seja um lar para os feridos e cansados, não uma instituição para os perfeitos. Querem que a Igreja encontre as pessoas onde elas estão, onde quer que elas estejam”.
Nos grupos que carecem de atenção especial quanto ao acolhimento, salientou-se “o desejo de acompanhar com autenticidade as pessoas LGBTQ+ e as suas famílias” e a “profunda necessidade de discernimento contínuo de toda a Igreja sobre a melhor forma de [as] acompanhar”
Os divorciados sentem-se muitas vezes indesejados, sugerindo “um processo de anulação mais transparente e claro”, observa o relatório.
“Outra esperança comum para se tornar uma Igreja mais acolhedora girava em torno de remover as barreiras à acessibilidade e acolher aqueles com necessidades especiais e suas famílias.”
A síntese refere a necessidade de maiores esforços “para acolher diversas comunidades culturais e étnicas” e para superar o racismo.
A preocupação com a falta de prática da fé dos jovens foi também apontada em diferentes sínteses. “Os próprios jovens expressaram um sentimento de exclusão e desejam participar mais plenamente como membros da comunidade paroquial”, afirma o documento nacional. O sentimento de exclusão também se manifestou em alguns jovens que buscam um sentimento de pertença a grupos e práticas tradicionalistas quanto à oração, à missa e devoção da Igreja.
Um aspeto que não surge muito evidenciado noutras sínteses é o enaltecimento que os católicos dos EUA fazem do papel desempenhado pelas religiosas. “Quase todas as consultas sinodais compartilharam um profundo apreço pelo poderoso impacto” da sua ação pastoral, diz o documento-síntese.
Daí que relativamente a elas e, em geral às mulheres, cuja centralidade das contribuições para a vida da Igreja é igualmente reconhecida, particularmente nas comunidades locais, destaca-se o seguinte: “as pessoas mencionaram uma variedade de maneiras pelas quais as mulheres poderiam exercer liderança, incluindo pregação e ordenação como diáconas ou padres. A ordenação de mulheres surgiu não principalmente como uma solução para o problema da falta de padres, mas como uma questão de justiça.”
Em síntese, pode dizer-se que, para um país em que a Igreja se retraiu e até resistiu ao Sínodo, os resultados são substantivos. “O início da fase diocesana … foi recebido com um misto de excitação, confusão e ceticismo. Várias dioceses denotaram alguma apreensão e até oposição ao iniciarem sua escuta sinodal, por acharem esse processo “fútil” e demasiado exigente. Porém, faz notar a síntese, à medida que ele avançou, “muitos foram surpreendidos por um nível de implicação e riqueza que superou as expectativas”. No final, registava-se “grande apreço pelo processo sinodal e gratidão “pela oportunidade de serem ouvidos e de ouvirem, e pelo espírito de abertura”.
Aqueles que partilharam as suas vivências, especialmente nas sessões em pequenos grupos, afirmaram que pela primeira vez se sentiram ouvidos pela Igreja.