
Lisboa, Porto, Braga, Santarém e Leiria são os distritos que apresentam um maior número de casos, por ordem decrescente, de abusos sexuais a menores na Igreja, avançou a socióloga Ana Nunes de Almeida (esqª), durante a apresentação do relatório. Foto © Clara Raimundo/7Margens.
É “a ponta do icebergue”: pelo menos 4.815 crianças foram vítimas de abusos sexuais no seio da Igreja Católica, em Portugal, ao longo dos últimos 70 anos e, na esmagadora maioria dos casos, os abusadores foram padres. Os dados, divulgados na manhã desta segunda-feira, 13 de fevereiro, pela Comissão Independente (CI) para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica em Portugal deixam entrever uma realidade que pode ser ainda mais “inquietante”. E agora, o que fazer? O relatório da CI deixa pistas: entre elas, a criação de um novo organismo que dê continuidade ao seu trabalho, até porque as comissões diocesanas se têm revelado ineficazes.
O estudo, o primeiro do género realizado em Portugal, incidiu sobre os abusos sexuais de crianças por membros e/ou colaboradores da Igreja, entre 1950 e 2022.
A comissão, que iniciou os seus trabalhos em janeiro de ano passado, recebeu ao todo 564 testemunhos, dos quais validou 512. Mas muitas das vítimas que testemunharam referiram ter conhecimento de outras crianças que também haviam sido abusadas. Assim, contabilizando essas referências, o grupo de trabalho chegou a “uma rede de vítimas mais extensa, calculada num número mínimo de 4.815 crianças”, explicou aos jornalistas o coordenador da CI, Pedro Strecht.
Quanto ao número total de crimes, “não é possível quantificar, porque a maior parte das crianças foi abusada mais do que uma vez”, assinalou o médico pedopsiquiatra. Há registo de crimes em todos os distritos do país, mas Lisboa, Porto, Braga, Santarém e Leiria são aqueles que apresentam um maior número de casos, por ordem decrescente, de abusos sexuais a menores na Igreja.
Para o Ministério Público, foram enviadas apenas 25 queixas, dado que muitas vítimas não identificaram os seus abusadores e grande parte dos crimes foram cometidos há décadas, encontrando-se já prescritos, referiu o antigo ministro da Justiça, Álvaro Laborinho Lúcio.
Tendo em conta que, em 52% dos casos a vítima só revelou o abuso de que foi alvo em média dez anos depois de este ter ocorrido e em 43% dos casos essa denúncia aconteceu apenas quando contactaram a comissão, a CI sugere, nas recomendações finais, que a lei seja alterada para que os crimes de abuso sexual passem a prescrever só depois de as vítimas fazerem 30 anos
O perfil das vítimas e dos abusadores

O relatório, disponível na íntegra no site da CI, mostra que maioria das crianças foi abusada quando tinha entre 10 e 14 anos de idade, e a sua média etária atual situa-se nos 52 anos, sendo “mais baixa do que em estudos de outras comissões independentes na Europa”.
O estudo mostra ainda que a maioria das vítimas são do sexo masculino (52%), mas existe “um número também importante de vítimas do sexo feminino”.
Em termos temporais, o maior número de abusos sexuais situa-se no intervalo entre 1960 e 1990, quando estão referenciados 58,3% dos testemunhos. De 1991 até hoje, concentram-se 21,9% das situações.
Relativamente aos locais mais comuns de abuso são, por ordem decrescente: seminários (23% dos casos), igreja sem outra especificação (18,8%), confessionário (14,3%), casa paroquial (12,9%) e escola religiosa (6,9%). Ao longo das décadas, verifica-se um declínio dos seminários enquanto local preferencial e surgem alguns picos de casos em locais externos à igreja, nomeadamente associados aos agrupamentos de escuteiros, entre os anos de 1991 e 2010.
Nas descrições dos abusos cometidos, predominam os atos que envolvem manipulação de órgãos sexuais, masturbação, sexo oral e sexo anal, bem como cópula completa. Mais recentemente, foram crescendo as formas de abuso que implicam a masturbação e o sexo oral, bem como o visionamento de pornografia infantil, destaca o estudo.
Mais de metade das vítimas (57,2%) referem que os abusos ocorreram mais do que uma vez, e em 27,5% dos casos prolongaram-se por “mais do que um ano”.
Quanto ao perfil da pessoa agressora, o relatório indica que, em 96,9% dos testemunhos, ela é do género masculino, em 77% dos testemunhos é referida como sendo “padre”, e em 46,7% das situações já era anteriormente conhecida da vítima.
Testemunhos chocantes e sete suicídios

A comissão baseou o seu trabalho sobretudo na realização de entrevistas e inquéritos diretamente às vítimas, mas também numa investigação inédita aos arquivos históricos das 21 dioceses do país (20 territoriais e a diocese militar), bem como de inúmeras instituições católicas, tendo ainda feito uma análise de conteúdo de notícias da imprensa, nacional e local.
“Não foi fácil escutar, registar ou ler cada um destes testemunhos”, afirmou, durante a apresentação, a cineasta Catarina Vasconcelos, que pertence também à comissão independente liderada por Pedro Strecht. Desses testemunhos, a CI selecionou sete para ilustrar as principais tipologias de abusos identificadas.
Lidos pelos sociólogos Ana Nunes de Almeida e Vasco Ramos, os depoimentos revelaram histórias chocantes, que aconteceram em períodos temporais e locais diferentes.
Na plateia, onde se encontravam dezenas de jornalistas de diversas nacionalidades, o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), José Ornelas, outros seis bispos, e ainda o padre jesuíta Hans Zollner, membro da Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores, as expressões variavam entre a consternação, a comoção e a incredulidade. À tarde, o responsável máximo da CEP, rodeado dos outros seis membros do conselho permanente, reagiu ao relatório dizendo que pedia perdão às vítimas, manifestando dor e vergonha e garantindo “tolerância zero” para com os agressores. Ao mesmo tempo, anunciou que no dia 3 de março está agendada uma assembleia plenária extraordinária da CEP dedicada exclusivamente ao debate sobre este tema e às questões contidas no relatório agora divulgado. [ver outro texto no 7MARGENS.]
De todas as vítimas escutadas, sabe-se que 77% nunca apresentaram queixa a pessoas ou estruturas da própria Igreja e só 4,3% formalizaram queixa em tribunal. O estudo indica que muitos o fizeram agora por se tratar “de uma comissão independente e externa à Igreja, com profissionais reconhecidos que transmitiam ‘confiança’; por poderem manter o anonimato, e por terem percebido que, afinal, “não eram a única vítima”. Alguns só recentemente compreenderam que o que sucedeu na infância foi um abuso sexual.
Independentemente disso, a comissão fez questão de sublinhar que “nenhum abuso sexual deixa uma criança emocionalmente indiferente”. O psiquiatra Daniel Sampaio, que também integra a CI, assinalou que a perturbação de stress pós-traumático é frequentemente associada a casos de abuso sexual e há ainda ” correlação com abuso de álcool, das drogas e esquizofrenia”, continuou.
Na amostra obtida, em casos descritos na imprensa ou obtidos por testemunho de outrem (familiar, por exemplo), houve sete casos “que terminaram em suicídio consumado”, alerta o relatório.
“Distanciamento” das hierarquias face ao problema
Durante a apresentação do relatório, a socióloga Ana Nunes de Almeida havia alertado para o contraste entre o “alheamento” do topo da hierarquia da Igreja e a “intensidade e gravidade” dos testemunhos que foram recebidos ao longo de quase um ano.
Durante o período em que decorreram os trabalhos de recolha de testemunhos, a Comissão Independente entrevistou os bispos da quase totalidade das dioceses portuguesas (houve dois, dos 21, que não responderam) e 13 superiores de instituições religiosas e constatou “distanciamento” em relação à crise dos abusos.
Tentando perceber quais os motivos na origem dessa postura, Ana Nunes de Almeida deixou algumas questões no ar: “Posição defensiva face ao risco de eventuais suspeitas e acusações de ocultação? Ilustração de clericalismo e da prioridade concedida, antes de tudo, à defesa da reputação da instituição?”, sugeriu, sem dar respostas.
No final da apresentação, já no período aberto às perguntas dos jornalistas, a investigadora tomou de novo a palavra para deixar uma recomendação aos bispos e padres portugueses: que “tomem a palavra para falar deste problema”. “Durante o trabalho de campo houve muito poucos bispos ou sacerdotes que, na sua missa ou atividades pastorais, alertassem para este problema e fizessem um apelo ao testemunho – assinalou.
Ana Nunes de Almeida disse ainda ter ficado “absolutamente chocada” com declarações que atribuiu a um responsável da pastoral juvenil da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), que terá dito que “os resultados do relatório não vão afetar, de certeza, a JMJ”. Para a socióloga, este foi mais um “sinal do alheamento” que havia referido. E colocou nova pergunta: “Há ou não melhor lugar para discutir este problema do que a JMJ?”.
E agora?

A integração da problemática dos abusos sexuais de menores na Jornada poderá ser um dos temas a debater pelos bispos na assembleia de março, assim como outras medidas a tomar pela Igreja portuguesa a partir da análise do relatório apresentado nesta segunda-feira.
No documento, a CI deixa algumas propostas, a começar pela criação de uma nova comissão multidisciplinar, composta por membros internos e externos à Igreja, para dar continuidade ao estudo e fazer o acompanhamento do tema.
Cada diocese já tem a sua própria comissão, mas Pedro Strecht considera que a maioria das vítimas “não se sente à vontade” para usá-las como primeiro lugar de denúncia. “Os casos comunicados às comissões diocesanas foram muito poucos, recebemos oito da totalidade das 21 comissões”, avançou. O coordenador do estudo revelou ainda que “há um caso complicado em que um diretor da comissão diocesana é apontado como alegado abusador e o senhor bispo em causa está consciente dessa situação”, disse, sem referir de que diocese estava a falar.
A comissão sugere ainda que seja feito um “pedido efetivo de perdão sobre as situações que aconteceram no passado” e que este seja materializado, eventualmente sob a forma de um memorial.
Além disso, o grupo de estudo propõe que deixem de ser utilizados espaços físicos fechados, individuais, enquanto locais de encontro e prática religiosa e ainda que seja assegurado “apoio psicológico continuado às vítimas do passado, atuais e futuras”, algo que deverá ser responsabilidade da Igreja, mas feito em articulação com o Serviço Nacional de Saúde.
De referir que nenhuma das vítimas ouvidas manifestou intenção de pedir indemnizações à Igreja, mas, quando questionadas pela comissão sobre “o que poderia fazer a Igreja para reparar o sucedido?”, muitos afirmaram a necessidade de apoio psicológico/psiquiátrico atual e futuro.
A maioria tem também a expectativa de “um pedido público de desculpa por parte da Igreja Católica portuguesa em relação às vítimas de abuso sexual praticado pelos seus membros”, a que acrescentam o desejo de compromisso de respostas futuras de prevenção e intervenção adequadas.
Apesar de a maior parte das pessoas que testemunharam se dizer católica, o estudo evidencia o facto de “a Igreja ter perdido fiéis como consequência direta da existência de abusos sexuais de crianças praticados pelos seus membros”.
Pedro Strecht disse não estar em condições de avançar uma estimativa do número de abusadores dentro da Igreja Católica em Portugal, mas fez questão de salvaguardar que “é baixo o número de abusadores dentro do seio da Igreja e, por isso mesmo, continua a ser importante não confundir a parte com o todo”. E acrescentou: “Sabemos, também, que a percentagem da sua existência enquanto praticada por membros da Igreja é muito pequena, sobre a realidade do assunto dos abusos sexuais de menores em geral”. Por isso, importa continuar a dar atenção a este tema. “Falem, falem. Vamos juntos, pela verdade”, apelou.
Não foi com palavras, no entanto, que terminou a sessão de apresentação do relatório. Nos cinco minutos finais, fez-se silêncio no auditório 2 da Fundação Calouste Gulbenkian para ver e ouvir a pianista Maria João Pires, numa gravação em vídeo, a interpretar uma peça de Schubert. Filmado no cenário noturno do Centro de Artes de Belgais no dia 18 de janeiro, o vídeo – projetado na grande tela onde anteriormente tinham passado os “números inquietantes” e testemunhos chocantes – trazia, com a música, a luz quente iluminando a pedra e a solidão da pianista. Um lamento, em forma de Impromptus, em homenagem às vítimas.