Pelo Sonho é que Vamos é o título da obra póstuma de 1953 do escritor de Azeitão, em Setúbal, Sebastião da Gama. Depois de ler num tempo bem mais curto do que esperava pelo entusiasmo que me criou A Terra Tem Sede – Guerra e paz nos reinos dos rios, de Erik Orsenna (ed. Temas e Debates), achei que o trocadilho com o poema inspirador de Sebastião da Gama, que também recomendo, era a melhor forma de descrever o livro.
Garona, Loire, Ródano, Reno, Danúbio, Tigre, Eufrates, Jordão, Ganges, Mekong, Rio Amarelo, Rio Vermelho, Darling, Murray, São Lourenço, Mississípi, Panamá, Amazonas, Paraná, Nilo, Níger, Senegal, Congo são os nomes de rios que encontramos de todos os continentes, alguns que se confundem com nomes de países, outros com uma história a perder de vista, uns mais transformados que outros, quase todos eles abraçando conflitos regionais pelo uso da água, todos progressivamente ameaçados pelas alterações climáticas.
No livro deste amante dos rios, percorremos o mundo, não de barco à vela nem em balão, mas navegando pelas conversas e a visão crítica que mereceu a minha concordância quase absoluta sobre os problemas que afetam os cursos de água e as suas baias hidrográficas. Cada rio merece um mapa e um conjunto de dados selecionados que nos permitem perceber melhor a sua origem, a sua extensão ou o seu caudal.
O Tejo, com duas páginas, também não é esquecido. Mas são as visitas, com muitas conversas por vezes presentes em tom coloquial, que nos ilustram a diversidade, a riqueza, os dramas que os rios encerram e nos fazem ter sede de visitar todas as paisagens destes grandes rios ou pelo menos sonhar com viagens que faríamos ao longo do seu troço, mais curto ou mais longo, através das imagens muito bem construídas de Erik Orsenna.
Reconhecendo a importância das barragens, o autor não deixa de ser um crítico das suas consequências. Exulta os rios como vias de comunicação privilegiadas em detrimento dos camiões que enchem estradas e poluem. E olha para um planeta que está a mudar, com secas e cheias que já estão e poderão ainda mais rapidamente pôr em causa a gestão, por vezes muito frágil, da água, como elemento essencial da natureza e do desenvolvimento. A geopolítica obviamente não está de fora, e são muitos os exemplos retratados de animosidades entre os países de montante e jusante, mas também os bons exemplos onde o entendimento tem sido possível.
Como Erik reconhece, o livro não é apenas um navegar pelos rios – é um livro da vida para quem já tem 76 anos e de quem sempre procurou abordar, dialogar, construir soluções para uma melhor gestão da água, sendo agora protagonista na associação Iniciativas para o Futuro dos Grandes Rios. Em Portugal debatemo-nos com o estado a jusante de rios internacionais cuja grandiosidade é relativa comparativamente com outros à escala mundial, mas que são exemplo de dificuldades de gestão e de conflitualidade entre setores e países à escala ibérica, onde as barragens também impediram a sua liberdade no que respeita à migração de diversas espécies de peixes, onde o tráfego fluvial, exceto nos estuários, é quase exclusivamente turístico, onde a pressão do uso agrícola é muito forte e as secas (mas também algumas cheias) se agravam com as alterações climáticas. A Terra Tem Sede… ajuda-nos a construir um olhar sobre o presente e o futuro e a necessidade de um maior diálogo participado e construtivo sobre o papel da água na sociedade e para a natureza e o conseguir equilíbrios difíceis que assegurem um desenvolvimento sustentável, mesmo que fortemente limitado pelas decisões passadas.
Francisco Ferreira é Presidente da associação ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável