
“Cada um dos muitos abusadores teve ou tem família, amigos e todo um contexto sócio-afectivo que o fez crescer, desde a mais tenra infância. Fez parte de uma paróquia, integrado ou não noutras estruturas eclesiais. Fez parte de uma freguesia e de um concelho, onde teve maior ou menor acção social.” Foto: Direitos Reservados
Folheei, com a atenção possível, tendo em conta o horror sentido, o relatório apresentado pela comissão nomeada pela Igreja, a fim de analisar os abusos sexuais praticados em contexto eclesial. Procurei o que lá não está: o nome das comunidades em que tais actos foram praticados, o nome das paróquias e freguesias onde cresceram os abusadores. Compreendo a prudência usada pelos investigadores e relatores, mas gostaria que tal informação lá estivesse. Não sou movido por qualquer espécie de curiosidade mórbida. A clareza de quanto se revela, em mais de quatrocentas páginas, basta para provocar náuseas. Considero, ainda assim, que seria importante cada uma das comunidades católicas envolvidas saber o que se passou no seu seio ou com os seus. Nem que fosse em privado. Estamos perante crimes praticados dentro da nossa casa. Não o esqueçamos.
Bem conhecemos a tendência dos seres humanos: o inferno está sempre nos outros, na casa dos outros, na família dos outros, na terra dos outros. Vemos os argueiros alheios, mas recusamos o confronto com as trancas que estão sobre a nossa cabeça. Se acaso nos apercebemos delas, preferimos fazer de conta. Há, no entanto, momentos libertadores, em que os canos se rompem, em que a sujeira sai para fora e emporcalha tudo à sua volta, mesmo quem não queira admitir que ela existia e tinha o pior cheiro. Era por isso importante que as comunidades católicas soubessem, objectiva e duramente, o que sucedeu no seu interior, entre os muros dos seus mais sagrados lugares, com aqueles que viu crescer.
Deixemo-nos de ilusões. A maldade faz parte de cada um de nós. Como dizia um filósofo, quando tentamos ser anjos transformamo-nos, frequentemente, em bestas, porque os instintos mais ferozes e irracionais fazem parte das nossas vidas. Basta uma pequena alteração (económica, social, afectiva) na nossa existência e ninguém está livre de se transformar num ladrão, num assassino, num criminoso qualquer. A falta de saúde mental faz o resto – e o resto é o bastante para transformar um cidadão cordato num perigo social. Por mais argutas que sejam as recomendações da comissão independente, nenhuma modificação ocorrerá se as circunstâncias que rodeiam os seres humanos não forem modificadas, radicalmente modificadas.
Cada um dos muitos abusadores teve ou tem família, amigos e todo um contexto sócio-afectivo que o fez crescer, desde a mais tenra infância. Quando uma árvore cresce torta, alguém se absteve de a endireitar. Fez parte de uma paróquia, integrado ou não noutras estruturas eclesiais. Fez parte de uma freguesia e de um concelho, onde teve maior ou menor acção social. São muitos os que agora sacodem a água do capote, mas nenhum dos padres ou responsáveis católicos que praticou abusos pode ser desligado desse contexto. Foram ou são portugueses como nós. Viveram ou vivem entre nós. Andaram connosco na escola. Convivemos com eles no café ou noutros lugares. Foram submetidos às mesmas propagandas que nós. Mereceram o aplauso (acéfalo?) de muita gente que, agora, lhes cospe na cara. Ortega y Gasset tinha razão quando falava na importância das circunstâncias que nos rodeiam para o nosso crescimento e para as opções que tomamos. Não é certamente por acaso que a maior parte dos abusos foi praticado nas décadas de maior permissividade social do século XX. Não é decerto uma circunstância menor verificarmos no relatório a ligação entre os comportamentos disruptivos e a chamada sexualização absorvente de tudo quanto nos rodeia, ocorrida nas últimas décadas e em benefício de uma sociedade alienante e consumista.
Não basta à Conferência Episcopal Portuguesa pedir perdão público às vítimas e aos portugueses. É absolutamente necessária essa assunção de culpa institucional, mas vale de muito pouco se ficar por aí. Tem de tirar consequências urgentes nos métodos de escolha dos candidatos ao sacerdócio e ao episcopado, em matéria de formação do clero, no que ao celibato diz respeito, na organização das comunidades e dioceses, nas relações de poder visíveis e invisíveis, na clareza das palavras e na sinceridade dos actos. Provando-se as acusações, mesmo estando prescritas no direito civil, há que reduzir ao estado laical quem profanou o bem recebido no dia da sua ordenação, não deixando, todavia, de acompanhar esse ser, tão necessitado de arrependimento e mudança de vida, por mais arrogante que seja.
Não vale de muito tratar os abusadores como párias sociais, sem compreender como chegou cada um deles ao ponto de degradação a que chegou. Há toda uma reflexão a fazer. São muito importantes um diagnóstico correcto e uma terapia adequada. Em primeiro lugar, é necessária uma reflexão individual que nos tire da indignação acéfala e espumante e nos coloque, antes, numa indignação que nos obrigue ao exame de consciência, individual e social. O estudo dos abusos sexuais, desencadeado por alguns membros da Igreja que não tiveram medo da verdade emergente, tem de continuar na sociedade portuguesa e europeia. Doa a quem doer! Tem de continuar e tem de tirar consequências dela, por mais duras que sejam. Decerto chegaremos à conclusão de que é preciso mudar de vida.
Os padres e outros membros da Igreja que abusaram são seres humanos como nós, mesmo tendo praticado – consciente ou inconscientemente – actos diabólicos (não tenhamos medo do termo). Pertencem ao mesmo país que nós e à mesma sociedade em que existimos e vivemos. O que a todos diz respeito por todos deve ser reflectido, sem histerias, mas tirando consequências.
Abusos sexuais ou de outro género, praticados na Igreja, separam o que deveria continuar unido ou religado. Não é por acaso que o simbólico tem como antónimo o diabólico (a divisão e a discórdia). Por uma misteriosa coincidência (?), o relatório foi apresentado no dia 13 de Fevereiro, exactamente dezoito anos após o falecimento daquela que terá recebido um “segredo”, no qual uma entidade angélica apelava três vezes – e dramaticamente! – à penitência. A Quaresma aproxima-se. Seria muito positivo se cada uma das comunidades católicas portuguesas organizasse – publicamente e de forma expressiva! – um rito de penitência, arrependendo-se por ter permitido a profanação gravíssima dos seus oásis de bondade, beleza e verdade. Seria também muito importante que a Igreja e os seus membros (entre os quais me incluo!) abdicasse do triunfalismo associado à Jornada Mundial da Juventude e usasse esse evento para se mostrar visivelmente arrependida… O Papa Francisco decerto concordaria.
Nenhum de nós pode abdicar da consciência, da humildade e da vigilância. Nenhum de nós pode deixar-se dominar pelo medo. Só assim será possível pôr à porta do templo aqueles que o conspurcam, ajudando-os na sua conversão e percebendo, ainda assim, que nenhum de nós está livre de cair na lama.
Ruy Ventura é escritor e investigador