
“Retrato de Fernando Pessoa” por Almada Negreiros (1964).
Pedro Teixeira da Mota investigou na célebre arca de Pessoa, e também no espólio do poeta na Biblioteca Nacional, textos na sua maioria inéditos, relativos à Metafísica, Esoterismo, Caminho Iniciático. Publicou nas Edições Manuel Lencastre quatro volumes relativos a esta abordagem na obra pessoana:
I – Moral, Regras de Vida, Condições de Iniciação (1988)
II – A Grande Alma Portuguesa (1988)
III – Poesia Mágica, Profética e Espiritual (1989)
IV – Rosea Cruz (1989)
Em geral, não é muito referida nem objecto de estudo e de investigação esta vertente pessoana, exceptuando a obra de Yvette Centeno e pouco mais. No entanto, “a compreensão do percurso e da obra de Fernando Pessoa, sobretudo no seu aspecto hermético, tem ainda de ser considerada provisória face aos textos inéditos existentes no espólio e à subtileza do tema”.
Escolhemos o volume II, publicado em 1988, no centenário do nascimento de Fernando Pessoa, para uma análise mais detalhada [os números referem-se às cotas do registo bibliotecário dos documentos].
A Grande Alma Portuguesa
Escreve o autor na Apresentação: “No decurso das nossas investigações no espólio de Fernando Pessoa, encontrámos uma carta cujo valor intrínseco merecia uma publicação especial.” Essa carta é a resposta de Pessoa às conferências acerca da personalidade dos portugueses, dadas pelo conde Keyserling, alemão, na sua visita a Portugal em 1930. É assinada com as iniciais O.S..
Pedro Teixeira da Mota aponta que o texto (53-80) indica sete nomes de Ordens e que na obra pessoana o nome da Ordem mais usada é a Ordo Sebastica (O.S.).
A carta de Pessoa já referida é exaustivamente analisada no livro:
(55H – 9, 11) – Há… três espécies de Portugal [ou 3 espécies de portugueses] dentro do mesmo Portugal: um começou com a nacionalidade: é o português típico… trabalhando obscura e modestamente em Portugal e por todas as partes do mundo… desde 1578 este português encontra-se divorciado de todos os governos e abandonado por todos… Outro é o português que o não é. Começou com a invasão mental estrangeira… que data no tempo do Marquês de Pombal. Esta invasão agravou-se com o Constitucionalismo e tornou-se grande parte das classes médias superiores, certa parte do povo e quase toda a gente das classes dirigentes. Está completamente divorciado do país que governa. É… parisiense e moderno. Contra sua vontade, é estúpido. Há um terceiro português que começou a existir quando Portugal, por alturas de El-Rei D. Dinis começou, de Nação, a esboçar-se Império. Este português fez as Descobertas, criou a civilização transoceânica moderna e depois foi-se embora…
Segundo Pessoa, desapareceu em Alcácer-Quibir, deixando alguns portugueses à espera.
É a referência à perda do rei D. Sebastião na batalha e à tradição messiânica do Rei, agora transformado num mito de renovação espiritual de Portugal.
Os Princípios da Ordem espiritual da Grande Alma portuguesa
(53-81) – Talent de Bien Faire – (1) – Executar na máxima perfeição todos os actos da vida, sobretudo todos os actos da vida superior; (2) – Fazer o Bem; (3) – Crear a vinda do Bem.
Acrescenta Pessoa no Testemunho autobiográfico de 1935: Ter sempre na memória o Martyr Jacques de Mollay, Grão-mestre dos Templários e combater sempre e em toda a parte os seus três assassinos – a Ignorância, o Fanatismo e a Tyrania.
Pensar fraternalmente é “realizar na Terra o reino do Céu… o que no fundo, é idêntico ao V Império” (54A – 34).
(125A-33) Assim temos que no V Império haverá a reunião das duas forças separadas há muito, mas há muito aproximando-se: o lado esquerdo da sabedoria – ou seja a sciência, o raciocínio, a speculação intellectual; e o lado direito – ou seja, o conhecimento occulto, a intuição, a speculação mystica e Kabbalistica… a paz, que Bandarra diz que haverá em todo o mundo, será a paz de não haver differenças religiosas, a de ‘um só Deus será conhecido’, como ele diz ainda.
Pedro T. da Mota comenta que a obra esotérica de Fernando Pessoa deve ser levada a sério: o próprio poeta passou ao longo da sua vida por várias fases, evoluindo nos últimos anos de vida, o que é natural nos seres humanos. E se o leitor pensa que “o Sebastianismo é apenas saudosismo ou a Rosa Cruz uma mistificação, é porque não acendeu os fogos superiores da sua alma e está ainda semiconsciente”. Na resposta de F. Pessoa ao conde Keyserling, temos presente a mesma ideia:
Você encontrou inteligentes e entendedores [os intelectuais portugueses que assistiram e comentaram as conferências], porém nada há a compreender, pois estão ainda no domínio das opiniões, da superficialidade dos corpos e do mundo material.
“A evolução humana”, acrescenta P. Teixeira da Mota, “faz-se à custa de esforços de realização de novas qualidades e estados de consciência, como o pensar e o raciocinar conscientes, e a intuição que são pontes ou arco-íris da revelação do Espírito Santo ou de Cristo interno e da unidade com planos e seres superiores”.
“A unidade da ciência, arte e religião – uma das características principais dos mistérios, e nos séculos posteriores dos iniciados e dos humanistas” (Pedro Teixeira da Mota)
(54A – 23) Três corpos e mundos – physico, etherico, astral
(Fernando Pessoa)
No capítulo “A Alma tripla”, o autor descreve com grande pormenor o “aspecto trinitário da alma humana, reflexo da constituição trina da Divindade e do Universo… conhecido dos iniciados e transmitida ao longo dos séculos nas tradições religosas e espirituais”; é desenvolvida também a noção da Kabbalah: “Pessoa, como português, tem alguma ascendência judaica – não esquecer a profunda influência judaica na história portuguesa até D. Manuel – como messianista – o seu Sebastianismo é apenas uma faceta – e como esoterista ocidental”, dirá no fim da vida, na nota autobiográfica: Fiel à tradição secreta de Israel, a Santa Kabbalah.
(54A – 40) – São três os caminhos da iniciação: pela emoção, pela vontade e pela inteligência… renegar os três assassinos: o Mundo, a Carne e o Diabo, pelo voto da Pobreza, Castidade e Obediência.
A Origem Subterrânea da Alma Portuguesa

(55F – 42) – Nada há de menos latino que um português. Somos muito mais helénicos – capazes, como os Gregos, só de obter a proporção fora da lei, na liberdade, na ânsia, livres da pressão do Estado e da Sociedade…
O autor desta obra desenvolve as semelhanças entre os dois povos, além de referir o facto dos vestígios da presença dos Gregos desde o séc. VI a. C., em Alcácer do Sal. Indica Sagres – promontório sacro – onde “segundo a tradição existiram dois templos dedicados a Heracles/Hércules e Kronos /Saturno… [este] representava o tempo face à eternidade… o limite criativo que se impôs à não-manifestação, mas também os limites que se põem depois às almas na sua reintegração na Luz Original. Representa, na linguagem ocidental, o Satan, o príncipe deste mundo, o que guarda o limiar e que exige dos humanos um esforço heróico para serem felizes ou então iniciados, no caminho da transcendência… Heracles/Hércules é o representante dos homens candidatos à iniciação, desenvolvendo 12 qualidades face às provações que se lhes impõem”. Mas não termina aqui a história do promontório…
Também “alguns historiadores falaram da civilização dolménica, a partir de 6000 a.C., de origem peninsular, baseada na crença da imortalidade da alma, no culto dos antepassados e em cerimoniais iniciáticos… é nestas grutas, antas ou dolmens, creadoras de um espaço sagrado… nesta Finisterra, é a Deusa-Mãe, da fecundidade, da terra… cultuada subterraneamente, a mais antiga representação divina conhecida…”
“Os Deuses não morreram, o que morreu foi a nossa visão deles”
(Fernando Pessoa)
… não se foram: deixamos de os ver. Ou fechamos os olhos, ou entre eles e nós uma névoa qualquer se entremeteu. Subsistem, vivem como viveram com a mesma dignidade, a mesma calma.
(trad. 54A- 59) … o verdadeiro sentido da iniciação é que o mundo visível é um símbolo e uma sombra, que esta vida que conhecemos através dos sentidos é uma morte e um sono…o que vemos é uma ilusão. Iniciação é o dispersar gradual e parcial – dessa ilusão.
“… a nova humanidade em desenvolvimento terá como característica o alargamento da consciência para além do plano físico e do sono, numa comunicação mais consciente com os seres espirituais e o Cristo, constituindo tal realidade o segundo Advento.”
O Caos e a Noite

Para Pessoa, a civilização grega, com… (12-49) o espírito de livre procura e discussão, tornando-se implicitamente a opinião de cada um como uma coisa a que tem direito, e tomando-se explicitamente a razão como a única garantia da verdade, com o culto da beleza, com os mistérios, foi a base da nossa civilização e da obra pessoana.
“Ovídio segue Hesíodo, mas aceitando a existência de um Deus superior, como iniciado que era”: antes do mar, da terra e do céu… a natureza oferecia o mesmo aspecto no Universo inteiro…Chaos, massa grosseira informe… sem laços de harmonia… Um Deus ou natureza muito mais poderosa, fez um intervalo entre o céu e a terra, separou o ar mais subtil do ar mais grosseiro, a terra e as águas… marcou-lhes lugares distintos…
“Fernando Pessoa, helenista profundo… substituiu o seu paganismo fatalista transcendental por um gnosticismo cristão iniciático.” Desenvolveu “um sistema de desenvolvimento da intuição”, mas restam poucos documentos. Por exemplo:
(54A – 45) – … Hierarquia divina: 0. Deus; 10. Seraphiins; 9. Cherubins; 8. Tronos; 7. Dominações; 6. Virtudes; 5. Potenciais; 4. Principiados; 3. Arcanjos; 2. Anjos; 1. Homens; o. Animais.
(53A – 49 trad.) – … Cristo é a ressurreição de Deus. Cristo é o laço entre o Mundo e Deus, e para atingir Cristo temos de matar as três palavras de Satanás, Desejo, Poder e Crença.
Terminamos com “dois excertos da sua belíssima e inspirada Oração à Noite – Princípio Feminino da Divindade.
“VEM, NOITE, antiquíssima e idêntica, / Noite Rainha nascida destronada, / Noite igual por dentro ao silêncio. Noite / Com as estrelas lantejoulas rápidas / No teu vestido franjado de Infinito. / Vem, vagamente, / Vem, levemente, / vem sozinha, solene, com as mãos caídas / (… )
Vem, e embala-nos, / Vem e afaga-nos, / Beija-nos suavemente na fronte que não saibamos que nos beijam / Senão por uma diferença na alma. / E um vago soluço partindo melodiosamente / Do antiquíssimo de nós / Onde tem raiz todas essas árvores da maravilha / Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos / Porque os sabemos fora da relação com o que há na vida / (…) / Vem, Noite silenciosa e extática, / Vem envolver na noite manto branco / o meu coração… “ ( Poesias de Álvaro de Campos)
Maria Eugénia Abrunhosa é licenciada em Românicas e professora aposentada do ensino secundário.