
“Foi uma aula interessante, na qual os saberes tradicionais foram aflorados, sem preconceito da parte de muitos. Muitos diziam que, mesmo com a introdução do ensino de “conteúdos locais” nos curricula escolares, ainda impera alguma ignorância sobre nós próprios enquanto moçambicanos.” Foto: Curandeiro. DR
Conheci um médico que dizia que, depois da informação sobre uma doença, a sua cura pode depender de três processos: o seu tratamento (remédios), a sua aceitação ou fé na extensão da doença (convicção/crença) e a anuência ou o grau de imunidade do indivíduo (corpo). Basta, segundo ele, que uma das componentes suplante a outra, para que se tenha um “meio caminho andado” para revigorar a pessoa. Este foi o mote para o presente texto.
Há dias, num módulo que lecciono, no curso de Administração e Gestão Hospitalar, questionei os meus estudantes, futuros gestores de instituições de saúde, se no âmbito da gestão de recursos humanos, nos hospitais ou centros de saúde nos quais vierem a trabalhar, poderiam levar em consideração uma justificação de faltas em modelo não oficial; isto é, se num país como Moçambique, no qual a maioria das pessoas não tem acesso ao hospital, aceitariam como justificação de faltas, informação oral ou escrita passada por um curandeiro. A pergunta vinha, obviamente, do facto de que muitas das nossas gentes têm sido atendidas/tratadas por médicos tradicionais. Além disso, o único modelo que tem sido aceite é um atestado médico passado por um hospital ou centro de saúde de medicina moderna.
Gerou-se, na sala de aulas, um debate aceso. Uns diziam que só poderiam aceitar justificações em modelos oficiais, portanto, atestados de saúde passados por médicos da medicina moderna e nunca algo que viesse da medicina tradicional. Entretanto, alguém no grupo recordou que um colaborador da área da saúde nunca deveria ser uma pessoa que exclui, porque, para os trabalhadores dessa classe, a saúde e a defesa do ser humano estão acima de tudo. O debate ficou mais aceso e levou-nos a outros patamares, os das doenças e dos seus processos de tratamento: remédios, crenças e corpos…
Alguém mencionou que o processo de cura da papeira, na sua cultura, é feito com recurso a um colar de sabugo ou colar de cauda de coelho. Basta que este seja colocado ao pescoço do doente, para que a doença seja afastada. Uma outra pessoa disse-nos que na sua cultura recorria-se ao sopro de uma garrafa, várias vezes ao dia. Passados dois ou três dias, tudo voltaria ao normal.
Nessa senda, alguém decidiu contar-nos como é que a sua tradição abordava a varicela. Disse-nos que se peneirava cinza de carvão por cima do doente e que, depois disso, este deveria dormir em quarto escuro, vestido de roupa vermelha e que, em cerca de três dias, a doença ficava curada. E, para tratar as feridas, basta fazer-lhes uma lavagem com cacana (momórdica balsamina).
Uma outra doença foi mencionada por duas alunas, a chamada doença do disco, caracterizada pela vermelhidão no pescoço de um recém-nascido. Segundo elas, isso faz com que a criança chore muito e quase não se cale. A mancha causa muita dor. A sua cura, pelo que disseram, passa por se fazerem umas incisões na pele da criança e nelas esfregar uma mezinha feita a base de óleos e de um disco (suporte circular plástico de armazenamento de dados electromagnéticos). Fechadas as fendas, a doença também fica curada.
Foi uma aula interessante, na qual os saberes tradicionais foram aflorados, sem preconceito da parte de muitos. Muitos diziam que, mesmo com a introdução do ensino de “conteúdos locais” nos curricula escolares, ainda impera alguma ignorância sobre nós próprios enquanto moçambicanos; ao saber-se que a Ásia e muitos países africanos ao redor de Moçambique decidiram abandonar preconceitos imperiais e abordar as suas doenças, culturas e tradições, em função da tradição e da modernidade, porque, em bom rigor, elas existem em qualquer lugar do mundo.
Toda essa conversa revelou o quão sossegadas algumas pessoas estão, relativamente às suas crenças e aos remédios que utilizam para curar os seus corpos. Ficou ainda, entre nós, patente a ideia da necessidade de se estabelecerem diálogos entre modos de fazer ciência e de abordar a sabedoria popular; bem como, colocar as nossas instituições ao serviço daquilo que é, de facto o modus vivendi e operandi dos nossos povos, sem deixar de os proteger no caso de alguma cultura nociva, porque ela existe (na perspectiva de alguns), tal como o caso da excisão do clítoris da mulher; furar partes do corpo para colocar adereços, tatuagens ou incisões para colocar remédios, etc, por exemplo.
Ainda em função do que aprendi dessa conversa, ocorre-me deduzir que o médico a que me referi no início deste texto deve ter alguma razão, a julgar pelas conversas e práticas mencionadas pelos meus alunos, como sendo funcionais nas suas culturas. Junta-se a todos esses remédios, crenças e práticas, a possibilidade ou habilidade dada ao corpo de auto-eliminar algumas doenças…
Sara Jona Laisse é membro do Graal, Movimento Internacional de Mulheres Cristãs e docente na Universidade Católica de Moçambique em Maputo. Contacto: saralaisse@yahoo.com.br.