
S. João Paulo II e Ali Agca na prisão, num encontro que ficou para a história como um exemplo de perdão. Foto © Vatican Media
Há uns anos, vivia então em Paris, um acontecimento na altura bastante mediatizado marcou-me profundamente e, ainda hoje, o transporto na parte viva da minha memória. Decorridas quase quatro décadas, o gesto que convosco quero partilhar continua presente no meu espírito e não deixa de me questionar. E ainda bem que assim é, pois significa que continuo a inquietar-me e a deixar-me interpelar.
De uma forma resumida o que aconteceu foi que uma mãe, a quem violaram e assassinaram a sua amada e querida filha adolescente, decidiu visitar na prisão o rosto dessa desumanidade monstruosa e conceder-lhe o seu perdão. Ao ser perguntada sobre este seu gesto, ela respondeu que nada traria a sua querida filha de volta, que nada apagaria a sua indescritível dor e que a única forma, segundo ela, de honrar a memória da sua filha e de aliviar o peso da dor que transportaria até ao último dos seus dias, seria o de compreender as razões e, num gesto de humanidade, conceder ao “carrasco” a oportunidade de se redimir.
Para quem provocou o mal, redimir-se não deixa de ser um acto de coragem e de humildade, mas sentir que alguém, sobretudo a vítima, se dispõe a caminhar junto, pode ser profundamente transformador. Não significa que sempre o seja, mas acredito que em alguns casos o desígnio se cumprirá. O perdão define-nos o caminho, sara-nos as feridas e resgata-nos da amargura e da dor calada da solidão.
O gesto na altura foi bastante controverso, tendo causado grande discussão, alimentada também pela mediatização de que foi alvo. Confesso que ainda hoje me continuo a perguntar se teria eu a coragem, a humildade e a nobreza de gesto semelhante. Continuo a pensar que não e imagino que o tamanho da minha dor correria o risco de se transformar em ódio e em dobro. Mas nunca deixei de me interrogar sobre o gesto e a questão do perdão tem-me acompanhado desde então.
Erri de Luca, no seu livro Caroço de Azeitona (ed. Assírio & Alvim), diz falar de Deus na terceira pessoa por haver algumas “pedras de tropeço” que o impedem dessa proximidade e pelas quais permanece fora da comunidade dos crentes. Uma dessas pedras é precisamente o perdão. Escreve ele: “Não sei perdoar e não posso admitir ser perdoado.” O rabi Nachman de Breslau (1772-1810), citado por Erri de Luca, “afirmava que o arrependimento não era um impulso de afastamento, o ímpeto que faz o mergulhador largar o chão, mas o sentimento pelo qual alguém se encontra diante do erro, da injustiça e pela primeira vez não recai, não volta a cometê-la. Nachman diz que o arrependimento é um projeto que tem a ver com o futuro, mais do que com o remorso voltado para o passado.” Escreve Erri De Luca: “Na minha vida existe o limite do imperdoável, do jamais reparável. Não posso admitir ser perdoado, não sei perdoar aquilo que cometi.”
Ao contrário do que algumas vezes se diz e escreve, perdoar não significa esquecer ou passar uma borracha pelo que aconteceu, uma espécie de vazio da memória. Não, até porque o esquecimento seria uma profunda injustiça e desonrar a memória das vítimas e desrespeito pelo seu sofrimento. Perdoar é dar uma oportunidade, apesar do mal causado, é correr o risco de caminhar junto com quem não seria suposto fazê-lo. Não deixa de ser um risco, o qual apenas é atenuado por confiarmos. Porque não existe perdão sem confiança. Para que tal aconteça é necessário que o outro, o causador do mal, reconheça os danos provocados e admita o novo horizonte que diante dele se estende como dádiva, estando disposto a caminhar sabendo que não está só. Ninguém esquece e cada um sabe o que em si transporta, mas, e apesar disso, estão dispostos a fazer caminho, a construir futuro.
Não é fácil. Perdoar nunca é fácil, pois exige a humildade de nos desnudarmos da roupagem que ao longo da vida vamos vestindo e de nos olharmos naquilo que realmente somos. E o que somos nem nós muitas vezes o sabemos. Se acreditamos na verdadeira inclusão, o perdão é, sem qualquer margem de dúvida, o grande pilar de uma sociedade que se diga e se pretenda verdadeiramente inclusiva. Não existe futuro sem perdão, apesar da consciência do mal.
José Centeio é editor da opinião no 7Margens e membro do Cesis (Centro de Estudos para a Intervenção Social); contacto: jose.centeio@gmail.com