
“Na comunicação em rede, os indivíduos “escapam” das instituições e articulam novos ambientes simbólicos e de produção de sentido, que até mesmo validam sua existência.” Foto: Parlamentares contra PL 2630 © Paulo / Fotos Públicas
Neste momento, discute-se no Brasil o projeto de lei 2630, aprovado em junho de 2020 no Senado, cuja tramitação segue na Câmera dos Deputados e tem o apoio do governo Lula. O PL propõe medidas de combate à disseminação de conteúdo falso nas redes sociais e aplicativos de mensagens privadas e, embora tenha o apoio de diversas entidades da sociedade civil, esbarrou na oposição de bolsonaristas, evangélicos e big techs. Os bolsonaristas argumentam que a proposta é uma censura à liberdade de expressão; as big techs se opõem devido a penalização que podem sofrer caso veiculem e promovam fake News; além disso, afirmam haver uma margem ampla para definir o que é ou não um conteúdo falacioso. E os evangélicos? Por que parte relevante dos deputados da bancada evangélica votará contra o PL?
Nos últimos anos, parte dos evangélicos se alinharam às pautas bolsonaristas por entenderem que seus valores, entre eles o da liberdade, estariam sob ameaça; um resgate histórico pode nos ajudar a entendê-los. Os protestantes (evangélicos) chegaram ao Brasil na segunda metade do século XIX, em um período de transição do Brasil império para o Brasil República. Mesmo com a separação institucional entre Igreja e Estado e a instituição da liberdade de cultos, o catolicismo continuou a ser a religião predominante. Com a vinda, cada vez mais, de imigrantes protestantes, instalaram-se conflitos religiosos por meio da imprensa, que ganhara espaço no período. Os protestantes, cujo zelo pela liberdade de consciência e de culto é uma herança dos pais reformadores, viram-se no direito de disputar e garantir seu lugar na sociedade brasileira. Havia neles o medo de submeterem sua fé a um tirano, qualquer que fosse.
O zelo pela liberdade de consciência e de culto permanece e, na mesma medida, o medo de perdê-la. O que é relativamente novo é o ambiente onde os indivíduos expressam suas crenças e até mesmo realizam seus cultos: as redes sociais. Na comunicação em rede, os indivíduos “escapam” das instituições e articulam novos ambientes simbólicos e de produção de sentido, que até mesmo validam sua existência. Deste modo, o controle ou silenciamento do que é dito – ainda que justamente, por se tratar de uma mentira ou uma fala descontextualizada – impacta na construção do sentido que atribuem à existência (ANDRADE; RIBEIRO, 2022), sobretudo quando se pensa – no caso dos evangélicos – que o está em jogo, ou seja, sob ameaça, é a veiculação de suas crenças, ainda que, na realidade, não seja proposta persegui-las. Contudo, o medo está sempre à porta.
REFERÊNCIA
RIBEIRO, Valquíria Barbosa Fernandes; ANDRADE, Ana Maria Mattos. Sentido da existência sob influência das redes sociais na perspectiva da logoterapia. Cadernos de Psicologia, Juiz de Fora, v. 4, n. 8, p.826-840, jul./dez. 2022
Maria Angélica Martins é socióloga e mestra em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Brasil. Pesquisa a relação entre fenómeno religioso e política com ênfase para o protestantismo histórico e o neocalvinismo holandês.