Viagens a horizontes periféricos e pobres, um sínodo para renovar a Igreja, reformas e mudanças na Cúria, migrações e refugiados como tema sempre presente. A agenda do Papa para 2022 está preenchida mesmo se ainda se desconhecem muitas datas. E promete novidades.

Habitantes de Timor-Leste: pode estar para muito breve uma visita do Papa ao país lusófono da Ásia. Foto © Josh Estey | CARE
Viagens a novas periferias geográficas e políticas (Timor-Leste, Papua-Nova Guiné, talvez o Congo, o Sudão do Sul e o Canadá, entre destinos que talvez só deixem a América Latina de fora) e quiçá uma nova reunião com o patriarca ortodoxo russo; atenção ao problema das migrações e dos refugiados com um encontro sobre o Mediterrâneo, em Florença; uma nova edição do Encontro Mundial das Famílias e a intensificação da preparação do Sínodo da Igreja Católica que culminará em 2023. Estes são os grandes tópicos da agenda do Papa Francisco para 2022, um ano em que pode ser finalmente publicada a nova constituição sobre a Cúria Romana, que terá também novos responsáveis em diferentes organismos e provavelmente mais alguns novos cardeais.
Apesar de ter feito 85 anos em 17 de Dezembro último, não parece que o Papa abrande a sua actividade ou, sequer, que venha a resignar – hipótese que ele próprio admitiu. Francisco deverá querer presidir ao Sínodo que está em marcha – e, pelo caminho, à Jornada Mundial da Juventude de Lisboa, em Agosto de 2023. O facto de já haver um bispo de Roma emérito será também um factor inibidor da eventual resignação ao cargo. O que não deve abrandar também é a oposição que diversos sectores movem internamente às orientações do Papa.
Sendo já o segundo Papa que mais viajou (35 viagens e 53 países visitados), depois de João Paulo II, o factor mais imponderável das diferentes visitas será a evolução da pandemia.
Timor-Leste e Papua-Nova Guiné não estão no mapa-mundo dos países mais importantes. Mas é para aí que Francisco viajará numa das próximas vezes, se se concretizar a sua própria previsão de Outubro último: “Ainda tenho de pagar a conta atrasada da viagem a Papua-Nova Guiné e Timor-Leste”, disse Francisco na ocasião à agência argentina Telam, referindo a visita que esteve prevista para 2020, mas foi suspensa por causa da pandemia. A Indonésia poderá ser incluída no roteiro, de acordo com a revista America, dos jesuítas dos EUA, que cita fontes do Vaticano não identificadas.
Timor-Leste, o país asiático com maior percentagem de católicos (por contraste com a vizinha Indonésia, o país do mundo com mais muçulmanos), está classificado no 141º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que junta os níveis de riqueza, instrução, esperança de vida e natalidade, entre outros factores. Segundo os mesmos dados de 2019, os últimos disponíveis, a Papua está no 155º lugar, entre 189 países.
Sudão e Congo: nos lugares de todo o sofrimento

Criança a separar minerais, no lago Malo (Congo): a cobiça faz dos congoleses da RDC uma das populações mais sofridas do mundo. Foto © Amnesty International e Afrewatch.
O Sudão do Sul é também a concretização de outra promessa pré-pandemia, feita depois de o Papa e o arcebispo de Cantuária, Justin Welby, se terem encontrado com líderes políticos sul-sudaneses, no final de um retiro que estes fizeram no Vaticano, em Abril de 2019.
O mais jovem país do mundo, que completou dez anos de independência em Julho último, é também um dos mais pobres em vários índices. Separado do seu vizinho do Norte (predominantemente muçulmano), no Sudão do Sul domina o cristianismo e o animismo (mais de metade da população, contra menos de 20 por cento de muçulmanos). O factor religioso foi um dos que levou à guerra pela independência mas, desde então, várias facções entraram em novo conflito. Em 185º lugar do IDH e apesar das riquezas do país, cerca de três quartos da população do país não tem acesso a cuidados básicos de saúde nem a água potável, por exemplo.
No final de 2019, o Papa afirmara que iria ao Sudão do Sul no ano seguinte, mas a pandemia também obrigou ao adiamento da visita e o número dois da diplomacia do Vaticano, o bispo Paul Gallagher, esteve no Sudão do Sul entre 21 e 23 de Dezembro, já com o objectivo de preparar a eventual visita do Papa.
A concretização do acordo de paz já assinado, no entanto, será a primeira exigência para que a visita aconteça.
No Congo, o Papa encontrará uma das populações mais sacrificadas do mundo (e também a maior população católica de África e um dos 10 países católicos mais populosos do mundo), vítima desde há décadas de guerras sucessivas, altos níveis de corrupção, concentração das imensas riquezas do país nas mãos dos senhores da guerra ou de políticos corruptos, que espezinham todos os direitos humanos básicos para ganhar dinheiro com a extracção de minérios, diamantes e outras matérias-primas. Muitas vezes, as crianças e adolescentes são as principais vítimas desta realidade, sujeitas a trabalho escravo na mineração.
Em Setembro, o Papa esteve em Budapeste, mas apenas por algumas horas, para presidir à missa de encerramento do Congresso Eucarístico Internacional e para um breve encontro com o primeiro-ministro Viktor Orbán. Defensor de políticas securitárias e da construção de muros para evitar a entrada de imigrantes e refugiados, o líder húngaro está nos antípodas do que o Papa tem defendido nesta matéria.
Regressando a Budapeste, o que pode acontecer no segundo semestre deste ano, o Papa pode já ser recebido por outro primeiro-ministro, uma vez que o país terá eleições em Abril. Orbán terá como adversário Péter Márki-Zay, um independente e conservador, que concorrerá em nome de vários partidos de esquerda e de centro-direita, depois de ter vencido um inédito processo de escolha do adversário unitário de Orbán.
Na Hungria, segundo a America – ou na Finlândia, outra hipótese já vinda a público –, o Papa poderia encontrar-se também, pela segunda vez (a primeira foi em Havana, Cuba, em 2016) com o Patriarca Cirilo, da Igreja Ortodoxa Russa, uma possibilidade admitida pelo próprio Francisco.
Outro destino para próximas viagens papais é o Canadá: depois do escândalo dos maus-tratos infligidos a crianças indígenas em várias escolas residenciais católicas, que em mais de mil casos culminou com a sepultura dos corpos sem identificação. Depois de um encontro do Papa com líderes indígenas, o Vaticano já confirmou que Francisco irá visitar o país no âmbito do “pedido de perdão às nações índias e do processo de reconciliação com os povos indígenas” (ver 7MARGENS).
Também Santiago de Compostela (Galiza, Espanha), no Verão, para encerramento do Ano Santo, Líbano (quando houver um governo estável), Malta e Índia (talvez só em 2023) são outros destinos já admitidos para novas viagens do Papa.
Traçar a rota pelas periferias

O Papa em Moçambique, em Setembro de 2019: uma das suas grandes preocupações é trazer para o palco mediático populações, povos, realidades tragicamente esquecidas. Imagem captada do vídeo do Vatican News.
Seja qual for o lugar, o planisfério traçado pelas viagens do Papa mostra um mundo virado do avesso, com o centro nas periferias, sejam elas geográficas ou existenciais, conforme a expressão que Francisco cunhou como horizonte do seu pontificado, dias antes de ser eleito. Os continentes deste mapa não mostram fronteiras nem separam povos e nações; antes são feitos da vontade de superar conflitos, do cuidado com a Criação que a toda a humanidade diz respeito, da atenção para com os mais vulneráveis (pobres, doentes, presos, idosos, sem-abrigo, vítimas de guerras, refugiados…), do diálogo entre todas as religiões. Sempre partindo de uma outra palavra-chave do seu pontificado: a misericórdia, relação de bondade que aproxima as pessoas e constitui a fonte mais intensa da justiça.
Este mapa-mundo inclui já também o aviso de que “todos os muros caem”; a exigência de terra, trabalho e tecto para todos, em assembleias de movimentos populares; ou a evocação, diante do Congresso dos Estados Unidos, da memória de Luther King, defensor dos direitos civis dos negros, ou de Dorothy Day, militante católica da não-violência, jornalista e sindicalista, amiga de pobres, vadios e sem-abrigo; e a pergunta angustiada dirigida a uma União Europeia em crise profunda: “Que te sucedeu, Europa humanista, paladina dos direitos humanos, da democracia e da liberdade?”
Uma das grandes preocupações do Papa é trazer para o palco mediático populações, povos, realidades tragicamente esquecidas. Pode servir de síntese a resposta que deu no avião, em Novembro de 2015, quando regressava da República Centro-Africana, a uma pergunta sobre a sida e os preservativos. Criticando a pergunta, afirmou que “o problema é maior” e descreveu: “a desnutrição, a exploração das pessoas, o trabalho escravo, a falta de água potável: estes são os problemas. Não estejamos a questionar-nos se se pode usar este penso ou outro para uma pequena ferida. A grande ferida é a injustiça social, a injustiça ao meio ambiente, a referida injustiça da exploração e a desnutrição. Este é o problema. Não gosto de descer a reflexões de casuística, quando as pessoas morrem por falta de água e à fome, por causa do habitat… Quando todos estiverem curados ou quando deixarem de existir estas doenças trágicas que o homem provoca quer por causa da injustiça social, quer para ganhar mais dinheiro – pense-se no tráfico das armas! –, quando não houver estes problemas, creio que se poderá fazer a pergunta.”
O diálogo ecuménico e inter-religioso, os direitos humanos, a defesa da paz e da dignidade da vida são outra constante que Francisco faz questão de destacar, a par do problema dos refugiados: não por acaso, a sua primeira viagem fora de Roma foi a Lampedusa e já por duas vezes (a última das quais há um mês) esteve em Lesbos, a ilha grega símbolo do (mau) acolhimento a refugiados fugidos das guerras e da miséria.
Relacionado com as viagens, desta vez no campo diplomático, haverá um outro tema a marcar a agenda para 2022: o acordo entre a Santa Sé e a China terminará a sua validade em Outubro deste ano e nessa altura Francisco terá de rever a sua estratégia: há fortes críticas aos fracos resultados do protocolo que prevê que o Vaticano possa nomear bispos, em troca do reconhecimento da estrutura da Igreja Patriótica”, mas o Vaticano não tem muita margem de manobra diante do gigante asiático, ainda por cima uma ditadura feroz que persegue ferozmente os crentes de qualquer religião, incluindo os uigures. (ver 7MARGENS).
Mediterrâneo: de mar a cemitério

Barco com migrantes no Mediterrâneo: Francisco já chamou “cemitério” ao mare nostrum dos romanos.
O tema dos migrantes e refugiados levará o Papa, já no final de Fevereiro, a Florença, para um encontro de bispos e autarcas sobre o Mediterrâneo, que prevê ainda uma saudação do Papa a meia centena de refugiados e requerentes de asilo.
Será a segunda vez, depois de ter estado em Bari, em 2020, para o encontro “Mediterrâneo, fronteira de paz”, que Francisco participa numa iniciativa destinada a debater a actual situação geopolítica e social dos países da bacia do Mare Nostrum dos romanos. No final de Novembro, imediatamente antes de viajar para o Chipre e a Grécia, o Papa falou do Mediterrâneo como “um grande cemitério”, na vídeomensagem que dirigiu aos dois países.
O Encontro Mundial de Famílias decorrerá entre 22 e 26 de Junho, em Roma. Pela primeira vez, ele terá um “formato multicêntrico, com iniciativas locais em dioceses de todo o mundo”, para permitir a participação daqueles que não podem viajar até Roma, como diz o Dicastério para os Leigos, Família e Vida (o mesmo que organiza a Jornada Mundial da Juventude).
O processo do Sínodo 2023 terá durante este ano um momento alto, com a elaboração do primeiro documento de trabalho, depois das consultas diocesanas. A este tema, o 7MARGENS dedicará um texto especial, a publicar ao final do dia de segunda-feira.
No âmbito mais institucional, haverá também novidades de monta: a reforma da Cúria, com a promulgação da respectiva Constituição apostólica, Predicar Evangelium (“Pregar o Evangelho”), deverá ficar finalmente concluída e publicada antes da Páscoa, se as traduções estiverem concluídas até lá.
A revista America diz que o Conselho Pontifício para a Cultura (presidido pelo cardeal Gianfranco Ravasi, que completa 80 anos em Outubro) será incorporado na Congregação para a Educação Católica, enquanto o Conselho Pontifício para a Nova Evangelização será fundido na Congregação para a Evangelização dos Povos. Permanecem dúvidas, entretanto, sobre o futuro do Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral, presidido interinamente pelo cardeal Michael Czerny, S.J., com a religiosa Alessandra Smerilli, F.M.A., como secretária.
Além do cardeal Ravasi, uma personalidade de peso na Cúria, outros estão na lista para mais que certas substituições, por já terem ultrapassado os 75 anos, idade prevista para a aposentação. É o caso, regista ainda a America, dos cardeais Luis Ladaria Ferrer, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (78 anos em Abril); Marc Ouellet, prefeito da Congregação para os Bispos (78 em Junho); Leonardo Sandri, prefeito da Congregação para as Igrejas Orientais (79 em Novembro); Giuseppe Versaldi, prefeito da Congregação para a Educação Católica (79 em Julho); Mauro Piacenza, penitenciário-mor (78 em Setembro); e arcebispo Marcelo Sánchez Sorondo, presidente da Pontifícia Academia das Ciências (80 em Setembro). Com novos responsáveis nestes cargos, pela primeira vez todos os principais responsáveis da Cúria terão sido escolhidos por Francisco.
Também no Colégio dos cardeais – com poder de votar num eventual conclave – haverá mudanças. O seu número estava, no final de 2021, em 120 cardeais eleitores – o máximo fixado pelo Papa Paulo VI em 1975 –, mas 10 deles completarão os 80 anos (a idade limite para votar num conclave) durante este novo ano. Um consistório de nomeação de novos cardeais é uma possibilidade, por isso, na agenda do Papa para 2022. Com pelo menos dez novos nomes entre os 120, o número de cardeais nomeados por Francisco aumentaria, assim para pelo menos 72.
Urgência da reforma e oposições

Francisco rodeado de crianças na ilha de Lesbos: alguns já andam a preparar a eventual sucessão, admite o Papa. Foto © Vatican Media
Submetido a uma operação aos intestinos em Julho, o Papa não dá mostras de abrandar o ritmo. Dá a entender o seu sentido de urgência reformadora, pressentindo que o pontificado, mesmo durando ainda algum tempo, entrou na sua fase descendente. Quando foi em Setembro à Eslováquia, Francisco ironizou dizendo que sabia que tinha havido algumas reuniões a preparar um eventual conclave, por parte de alguns dos que desejariam ver uma orientação diferente para o pontificado.
Envolvido ou não nesses encontros, um dos nomes que conta na perspectiva de um pontificado mais na linha de Ratzinger/Bento XVI será o de Marc Ouellet, precisamente um dos nomes a ser substituído. Outro é o do australiano George Pell que, mesmo tendo já 80 anos, pode ser um “fazedor de reis”, como lembra Robert Mickens no La Croix International.
O terceiro é o húngaro Péter Erdö, arcebispo de Budapeste, especialista em Direito Canónico, antigo presidente do Conselho das Conferências Episcopais da Europa (CCEE), que reúne os líderes dos episcopados de todo o continente. Nessa qualidade, Erdö estabeleceu amizades várias. Em Setembro, no Congresso Eucarístico que o Papa encerrou, 11 cardeais ainda com capacidade para eleger um futuro papa, estiveram em Budapeste convidados por ele e com todas as despesas pagas durante uma semana, conta ainda o analista do Vaticano.
Na revista America, o cardeal indiano Oswald Gracias dizia que se poderia resumir a atitude de Francisco em relação ao seu papado com uma frase: “O Senhor escolheu-me, o Senhor proteger-me-á o tempo que quiser. Estou a fazer o meu melhor, e quando Ele quiser, Ele leva-me embora”.
(A parte do texto relativa aos temas predominantes nas viagens reproduz, com adaptações, um excerto de um artigo para a revista Up, da TAP, em 2017.)