
“Espero que fique marcado no coração dos nossos líderes que podemos estar juntos, todas as tribos, todas as religiões, e progredir no desenvolvimento”, diz a missionária comboniana Beta Almendra (na imagem, à esquerda). Foto: Direitos reservados.
As ruas estão mais limpas que nunca, algumas foram alcatroadas, e a uma delas até lhe mudaram o nome: agora chama-se Rua Papa Francisco. A cidade de Juba está a postos para receber aquela que é a primeira viagem de um Pontífice ao mais jovem país do mundo, o Sudão do Sul, e entre os milhares que vão procurando um lugar para ver o Papa passar há um grande desejo comum: o de que esta visita contribua, definitivamente, para a paz.
Entre esses milhares, está a irmã Beta Almendra, comboniana em missão na cidade de Wau, que fez questão de ir até Juba, a capital, para o encontro com Francisco. A distância entre as duas localidades é superior a 600 kms, mas houve quem viesse de mais longe ainda, inclusive de países vizinhos como o Quénia ou o Uganda.
Uns viajaram de avião, outros de comboio ou carro, e muitos vieram a pé, aproveitando o tempo seco. “Nesta estação, é relativamente seguro viajar” – conta a irmã Beta ao 7MARGENS, a escassas horas da chegada do Papa – “E como esta é uma semana de férias da escola, vieram também muitos jovens, o que é excelente”. Até porque são eles, os jovens, “os primeiros neste país a ser convidados a pegar nas armas, e se eles ganharem esta consciência de que há outras escolhas, isso pode fazer toda a diferença para alcançarmos a paz”, destaca.

Uma das missionárias combonianas presentes no Sudão do Sul (ao todo, são neste momento dez), foi escolhida para fazer parte da comitiva de receção ao Papa no aeroporto. Quando a irmã Beta chegou a Juba, conversaram sobre o que lhe diria depois de o saudar. “Uma senhora que trabalha na cozinha da nossa casa deu a resposta: ‘Por favor, digam ao Papa que nós só queremos paz!”, conta a irmã Beta Almendra. “E é mesmo isso: em Juba vamos estar todos juntos a rezar pela paz, será um testemunho muito importante para os políticos de que há um desejo enorme de paz da parte de toda a gente”, sublinha. “Espero que fique marcado no coração dos nossos líderes que podemos estar juntos, todas as tribos, todas as religiões, e progredir no desenvolvimento. Que isto os ajude no futuro a dialogar”.
Uma jovem nação com uma História conturbada
O próprio Papa estará acompanhado, nesta visita, de outros dois líderes religiosos, em sinal desse desejo de diálogo e união: o primaz anglicano e arcebispo de Cantuária, Justin Welby, e o moderador da Igreja da Escócia, presbiteriana, Iain Greenshields.A viagem ecuménica, que tinha estado programada para julho de 2022 e foi adiada devido a problemas de saúde de Francisco, é inédita e acontece após uma série de gestos comuns entre os três líderes cristãos, incluindo uma mensagem conjunta, em 2021, pelo 10.º aniversário da independência do Sudão do Sul.
O país, com uma população maioritariamente cristã (em que 52% são católicos), obteve a sua independência ao separar-se do Norte árabe e muçulmano em 2011, após uma das piores guerras civis da história de África, que durou quase 40 anos.
Imediatamente após a independência, e apesar da esperança de que a jovem nação pudesse finalmente ter paz, eclodiram disputas territoriais com o Sudão pelo controle de algumas regiões petrolíferas na fronteira entre os dois Estados, em particular o de Abyei. Depois, no final de 2013, o Sudão do Sul mergulhou num conflito civil causado pela rivalidade entre o presidente, Salva Kiir, de etnia Dinka (o grupo étnico maioritário no país), e o seu então vice-presidente, Riek Machar, de etnia Duer (a segunda com maior representatividade).
Em 2018, um acordo político tentou pôr fim aos conflitos, mas há partes deste acordo, incluindo o envio de um exército nacional reunificado, que ainda não foram implementadas.
Para o acordo, além dos esforços diplomáticos da União Africana, da ONU, da União Europeia, dos Estados Unidos e da China, contribuiram também as Igrejas cristãs. No entanto, a sua assinatura não pôs fim à violência e às graves violações dos direitos humanos, também porque alguns grupos de oposição – a Aliança dos Movimentos de Oposição do Sudão do Sul United Front/Army (Ssoma/Ssuf), e o Ssoma-Real Sudan People’s Liberation Movement (Ssoma/Rsplm) – não aderiram, enquanto algumas partes signatárias alegaram que não foram consultadas e não se sentiam obrigadas a respeitá-lo.
Em abril de 2019, o Papa chamou a Roma os principais líderes, para um tempo de retiro e diálogo no Vaticano. No final deste encontro, Francisco teve um gesto inesperado e impactante: ajoelhou-se para lhes beijar os pés, exortando-os a não voltarem à guerra civil.

“Ele estava a tentar mostrar que os líderes devem ser servidores”, explica Joann Rachel, coordenadora do Conselho de Igrejas do Sudão do Sul e uma das principais vozes em defesa da paz no país, em entrevista à America Magazine. “Ele [estava] a mostrar a humildade de Jesus, e Jesus era um líder, e eles são líderes. Portanto, eles precisam de ser humildes e precisam de servir o povo”.
Agora, é como se a visita pessoal do Papa ao país fosse um complemento desse retiro espiritual. Naquela altura, o Papa “encontrou os líderes e agora vem para encontrar o povo”, assinala. “E pelo menos trará alguma esperança para as pessoas”, assegura.
As consequências devastadoras dos conflitos

De acordo com estimativas citadas pelo Vatican News, os conflitos no Sudão do Sul já fizeram cerca de 400 mil vítimas e mais de dois milhões de deslocados internos, aos quais se somam 2,3 milhões de sul-sudaneses obrigados a fugir para países vizinhos, sobretudo para o Uganda, mas também para o Sudão e a Etiópia.
A guerra também enfraqueceu a já frágil economia do país. Os seus 11 milhões de habitantes vivem principalmente da agricultura de subsistência e da pecuária em territórios prevalentemente desérticos, que nos últimos anos foram afetados por crescentes secas e inundações devido às alterações climáticas. A pandemia de covid-19 veio complicar este quadro, tendo dificultado a entrega de ajuda humanitária internacional da qual depende metade da população do Sudão do Sul. As inundações devastadoras na região do Alto Grande Nilo em 2020 também agravaram a insegurança alimentar de pelo menos menos um milhão de pessoas.
Ao todo, cerca de 8,9 milhões de sul-sudaneses precisam agora de ajuda, enquanto os conflitos étnicos continuam em várias partes do país. Precisamente na véspera desta “peregrinação pela paz”, 27 pessoas foram mortas em Lire Payam, Estado da Equatoria Central, no Sudão do Sul, no confronto entre pastores de gado e membros de uma milícia. Depois de os combatentes de um grupo rebelde terem assassinado seis pessoas de uma comunidade de pastores, estes retaliaram na quinta-feira, 2 de fevereiro, matando 21 civis numa área próxima, incluindo cinco crianças e uma mulher grávida.
Por isso, “realmente não há muito mais a dizer ao Papa, além de lhe agradecer pela sua vinda e de partilhar com ele este grande desejo: as pessoas simplesmente querem paz”, conclui a irmã Beta.