
Rapariga a sorrir. Foto © Brendan Beale | Unsplash
Será que os grupos que se reúnem para realizar como comunidade este percurso sinodal se lembram do gesto mais simples e mais evidente que o ser humano consegue identificar à distância? Um gesto que pode iluminar uma sala inteira sem se acender a luz? Um gesto tão simples que afecta o outro, interiormente, sem pronunciar uma só palavra? O gesto de 😊 sorrir.
Ao ler alguns contributos para este percurso e falando com algumas pessoas, um dos comentários que me fez mais impressão (dado o seu realismo) foi o de algumas paróquias sentirem como as pessoas são estranhas umas em relação às outras. De facto, numa boa parte das paróquias onde podemos entrar para celebrarmos juntos a missa, não é evidente sentir o ambiente de acolhimento que muitos desejariam. Porém, não esqueço como esse acolhimento se torna completamente diferente quando existe alguém à porta que nos acolhe com um sorriso. Um sorriso faz toda a diferença e tem história.
Colin Jones é professor emérito de história cultural na Universidade de Londres e procurou compreender qual o percurso histórico deste gesto na evolução cultural. Colin diz que esta palavra parece ter surgido somente no final do Império Romano como uma espécie de sub-riso. Ao longo do tempo, este “riso diminuto” foi ganhando expressão noutras línguas, e quando entra na arte, o sorriso surge como algo suave e angélico, mas com a boca fechada. Aliás, o sorriso com os dentes referia-se a algo de teor maléfico e este facto perdurou durante muito tempo. E das várias razões sociais para esta diferença entre os sorrisos com ou sem dentes, a que me parece mais curiosa é como o sorriso (sem dentes) transmite ainda hoje a ideia de uma pessoa calma e tranquila como gostava de expressar o pintor francês Charles Le Brun. Porém, será uma descendente deste pintor, Elisabeth Louise Vigée Le Brun que num auto-retrato exibido no Louvre decora o seu rosto com um sorriso que revela o branco dos dentes. A impressão que ficamos é diferente da versão angélica. Dá-nos uma maior sensação de proximidade, familiaridade e felicidade. Algo demonstrado em 1988 com um lápis.
Fitz Strack e um grupo de investigadores publicaram naquele ano o resultado de um estudo em que pediram a dois grupos de pessoas para verem uma banda desenhada e deram a todos um lápis (ou caneta). A uns pediram para segurar o lápis com os lábios e a outros pediram que segurassem com os dentes. Se o leitor fizer esta experiência diante de um espelho nota como segurar o lápis com os lábios nos dá um ar mais sério, enquanto que segurar com os dentes sem tocar nos lábios parece que estamos a sorrir. O resultado foi que o grupo daqueles cujo lápis obrigava a face a sorrir acharam a banda desenhada mais engraçada do que o outro grupo. Desta experiência retiramos como o sorriso não só expressa um estado de alma como pode predispor-nos a um certo estado de alma. Quer isso dizer que devemos estar sempre a sorrir?
Quantas vezes não ouvimos de pessoas da nossa comunidade cristã, coisas que nos feriram e, ainda por cima, ditas com um sorriso na cara? Quantas vezes não nos sentimos tristes e obrigámos o nosso corpo a sorrir para expressar como “ser cristão” é “ser feliz”? Não é preciso estar sempre a sorrir, mas se soubermos como o sorriso ilumina o espaço ao nosso redor, é importante usá-lo de um modo equilibrado.
De que serve todo este esforço da sinodalidade, se nos mantivermos estranhos uns em relação aos outros? Parece que a sinodalidade tem a finalidade de actualizar as estruturas da Igreja [Católica], mas de que servem as estruturas se não houver uma vida comum que faça do grupo de pessoas que comungam juntas do pão eucarístico, uma comunidade de vida? O sorriso pode quebrar a barreira da estranheza e estreitar os nossos relacionamentos. Não é raro ouvir de quem está fora da Igreja o comentário de medir o sentir de uma comunidade pela observação da cara das pessoas à saída da missa. Podemos estar a viver momentos de alguma dureza ou tristeza, mas quando a maior parte não sorri, por vezes penso que não se deve a algo que vivemos interiormente, mas ao facto de não nos olharmos sequer, olhos nos olhos, por não nos conhecermos. Podíamos sorrir mais uns para os outros, criando uma ambiente saudável e propício à comunhão entre nós. É um gesto simples, mas por que razão nos esquecemos tão frequentemente dele?
Miguel Panão é professor no Departamento de Engenharia Mecânica da Universidade de Coimbra. Para acompanhar o que escreve pode subscrever a Newsletter Escritos em https://tinyletter.com/miguelopanao. Contacto: miguel@miguelpanao.com