
Livro das assinaturas do Tratado que nesta sexta-feira, 22, entra em vigor: as religiões estão empenhadas nos esforços para abolir armas nucleares. Foto: Direitos reservados
“A Igreja Católica está irrevogavelmente empenhada na decisão de promover a paz entre os povos e as nações: é um dever ao qual se sente obrigada diante de Deus e perante todos os homens e mulheres desta terra. Não podemos jamais cansar-nos de trabalhar e insistir com diligência no apoio aos principais instrumentos jurídicos internacionais de desarmamento e não proliferação nuclear, incluindo o Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares”.
A posição clara e taxativa é do Papa Francisco e foi afirmada em 24 de novembro de 2019, no local que não podia ser mais tragicamente emblemático – o Parque da Bomba Atómica, em Nagasaki – no decurso da sua visita pastoral ao visita pastoral ao Japão.
Ao longo de 2020, e nos últimos meses de modo especial, Francisco não se tem cansado de insistir no tema. Na audiência geral desta quarta-feira, 20 de janeiro, voltou a fazer um apelo “por um mundo sem armas nucleares”, precisamente a propósito da entrada em vigor, nesta sexta-feira, 22, do Tratado para a Proibição de Armas Nucleares, que o Vaticano foi um dos primeiros estados a subscrever.
Poder-se-á perguntar por que põe o Vaticano a ênfase na abolição e proibição do armamento nuclear e não numa posição que poderá parecer mais pragmática, como é a não proliferação e a redução desse armamento.
Ler com atenção o que o Papa escreve na recente encíclica Fratelli Tutti (FT) pode ajudar a compreender. São vários os pontos a considerar:
– não se exploraram adequadamente as oportunidades que oferecia o fim da Guerra Fria por falta duma visão de futuro e duma consciência compartilhada sobre o nosso destino comum (FT, nº 260);
– numa situação mundial dominada pela incerteza, pela deceção e pelo medo do futuro e controlada por míopes interesses económicos, crescem os focos de tensão e a corrida aos armamentos (FT, nº 29);
– ataques “preventivos” ou ações bélicas justificados como “legítima defesa”, que acarretem “males e desordens mais graves do que o mal a eliminar” (FT, nº 58)
– o desenvolvimento das armas nucleares, químicas e biológicas e das possibilidades que oferecem as novas tecnologias conferiu à guerra um poder destrutivo incontrolável, que atinge muitos civis inocentes (FT, nº 258)
O ponto 258 da Fratelli Tutti pode servir de conclusão:
“A questão é que, a partir do desenvolvimento das armas nucleares, químicas e biológicas e das enormes e crescentes possibilidades que oferecem as novas tecnologias, conferiu-se à guerra um poder destrutivo incontrolável, que atinge muitos civis inocentes. É verdade que “nunca a humanidade teve tanto poder sobre si mesma, e nada garante que o utilizará bem”. Assim, já não podemos pensar na guerra como solução, porque provavelmente os riscos sempre serão superiores à hipotética utilidade que se lhe atribua. Perante esta realidade, hoje é muito difícil sustentar os critérios racionais amadurecidos noutros séculos para falar duma possível ‘guerra justa»’”.
Conselho Mundial das Igrejas e Religiões pela Paz: “Uma ameaça existencial única para a humanidade”

Militares dos EUA a observar uma explosão provocada por um teste nuclear, no Nevada, em 1951: esta é uma ameaça para a humanidade”. Foto: US Government (Governo dos EUA).
O Conselho Mundial de Igrejas (CMI), organização ecuménica que reúne à volta de 350 igrejas de mais de 110 países, representando mais de 500 milhões de cristãos em todo o mundo, saudou em outubro último o facto de se ter ultrapassado o limiar dos 50 Estados que ratificaram o Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares (TPAN), no quadro da ONU.
O CMI tem vindo a defender há bastantes anos, no plano internacional “esforços de cooperação para proibir o desenvolvimento, teste e uso de armas nucleares”, e tem trabalhado com as igrejas para pressionar os governos quanto à “imoralidade das armas nucleares e a necessidade de sua eliminação total”.
Para o Conselho Mundial, o TPAN que agora entra em vigor significa que “um novo padrão normativo de direito internacional foi criado”, ou seja, “uma nova norma global para rejeitar armas nucleares, que se espera que influencie e restrinja” o comportamento de todos os Estados, mesmo os que não o ratificaram e, em particular os que têm armas nucleares.
Uma outra organização que reúne uma centena de líderes das principais confissões e tradições religiosas do mundo é a Religions for Peace (Religiões pela Paz). Define-se como um movimento, já com mais de 50 anos, que, para lá das diferenças religiosas, encontra na busca da paz um ponto de encontro e uma plataforma de ação.
Um dos recursos produzidos por este movimento é um guia de ação para líderes religiosos sobre desarmamento nuclear (apenas disponível em inglês). Os pontos de partida são elucidativos e resumem-se nos seguintes aspetos:
“As armas nucleares representam uma ameaça existencial única para a humanidade. O número de estados que possuem armas nucleares continua crescendo. A possibilidade de terroristas fabricarem ou adquirirem armas nucleares aumenta. A tecnologia projetada para gerenciar essas armas não pode ser tornada infalível e a posse dessas armas expõe a família humana a acidentes potencialmente devastadores”.
Em articulação e no âmbito da Campanha Internacional para a Abolição de Armas Nucleares (ICAN, na sigla inglesa), que é uma coligação de organizações não-governamentais, diferentes organizações religiosas vinham já a trabalhar articuladamente, e têm continuado a fazê-lo, no sentido de estimular a conscientização e ação dos seus membros acerca do Tratado de Proibição das Armas Nucleares.
O ponto de partida desse esforço reside numa comum posição de que “as armas nucleares são incompatíveis com os valores defendidos pelas tradições religiosas” envolvidas, disseram eles. Entre esses valores estão o direito das pessoas a viver com dignidade e em segurança, o dever de proteger os vulneráveis e salvaguardar o planeta para as gerações atuais e futuras.
Um fundo mundial contra a fome com o dinheiro das bombas

Submarino russo Typhoon: o dinheirto gasto neste armamento deveria ser usado para erradicar a fome, propôs o Papa Francisco. Foto: Direitos reservados
Observa-se, em algumas destas movimentações de estruturas e agentes religiosos, a preocupação de não atomizar a compreensão do problema do armamento nuclear. Pelo contrário, busca-se contextualizá-lo e articulá-lo com as questões do desenvolvimento dos povos, da justiça e da paz.
Nesta perspetiva, o Papa Francisco tem sido explícito. De facto, no último Dia Internacional para a Eliminação Total das Armas Nucleares, a 26 de setembro, ele dirigiu uma mensagem vídeo ao secretário-geral da ONU, António Guterres em que colocava dois pontos-chave.
Por um lado, refutava o princípio da “dissuasão nuclear” que guiou as superpotências mundiais durante décadas, por “fomenta[r] um espírito de medo baseado na ameaça de aniquilação mútua, que acaba por envenenar as relações entre os povos e dificultar o diálogo”. Por outro, perguntava se as principais ameaças à paz e à segurança, tais como a pobreza, as epidemias e o terrorismo, entre outras, “podem ser enfrentadas eficazmente quando a corrida armamentista, incluindo as armas nucleares, continua a desperdiçar recursos preciosos.”
Este último aspeto tem sido reiterado em várias ocasiões e constava igualmente da mensagem para o Dia Mundial da Paz, assinalado em 1 de Janeiro, em que Francisco concretizava: “Como seria corajosa a decisão de criar um ‘Fundo mundial’ com o dinheiro que se gasta em armas e outras despesas militares, para poder eliminar a fome e contribuir para o desenvolvimento dos países mais pobres!”
Resta saber em que medida estas preocupações vão além das elites religiosas e são transpostas para a ação pastoral.