Por uma esperança que não seja ingénua

| 11 Set 2023

[xxiii domingo do tempo comum ― a ― 2023]

Teia de aranha

[a teia e o crivo / cuidam do alimento ― / nutre a esperança! © haicai e fotografia: Joaquim Félix]

 

1. «Quem dera ouvísseis hoje a sua voz» (Sl 94,7),
cantava o salmista num desejo que é um invitatório, um convite.
Quem dera, sim, que a palavra escutada possa desempedrar
tudo aquilo que, no centro de nós, deveria ser carne viva.
Na verdade, se amolecermos a dureza do nosso coração,
aberto pelos aguaceiros da leitura,
passamos a escutar a voz do Senhor que em nós germinará.
Sim, na semelhança das ervas que nascem em setembro,
com as primeiras chuvas, ainda com a terra quente.

2. A cadência da palavra apresenta-se com uma mensagem
que toca na pele da água ― a vida quotidiana que vai correndo ―
e se desenvolve em círculos à volta do mesmo tema:
o amor e a conciliação entre os irmãos da casa-comunidade.
E as propostas, que nela nos são apresentadas,
sugerem-nos que há diferentes modos e níveis de cultivar
a esperança da reconciliação quando há problemas.

3. Todos o saberemos, até por experiência própria:
da família à paróquia, nos seminários e nas comunidades religiosas,
mas também nos lugares de trabalho e nas instituições civis,
a vida compreende a regulação das tensões, quase sempre existentes.
De facto, a vida comunitária é exigente no campo das relações humanas.
Jean-Pierre Legauy, organista cego, disse-nos um dia aqui no seminário:
«Os problemas não são automáticos, mas nem sempre se podem evitar.
O mais importante é resolvê-los com sabedoria.
E, tanto para os evitar como para os resolver,
há que implementar o respeito pelas competências».

4. Nesta medida, não podemos ser ingénuos,
imaginando que a vida se poderia fazer sem problemas.
Ou que, quando eles aparecem, pensar que tudo é de fácil resolução,
cultivando uma esperança ingénua.
Ezequiel, que se encontrava junto dos exilados na Babilónia,
na sua qualidade de ‘profeta da esperança’,
poderia embarcar num discurso fácil, doce para os ouvidos,
apregoando que o final do desterro estaria próximo.
Porém, o problema agravou-se com a tomada de Jerusalém,
por Nabucodonosor, levando ainda mais gente para o exílio.
Ezequiel faz um apelo à reconciliação, pela vigilância ativa,
priorizando o «ímpio», para que ele se possa converter e reencaminhar.
Da atitude para com ele, note-se, depende a salvação da própria vida.

5. Quanto ao cultivo da esperança, nas circunstâncias presentes,
― para evitar o terrorismo dos «profetas da desgraça”, instigadores do medo,
conforme um artigo de Manuel Pinto, publicado no 7MARGENS,
que dá a conhecer as críticas do cardeal Blase Joseph Cupich, de Chicago,
gostaria de ler uma passagem da entrevista feita pelo padre Antonio Spadaro, sj.
ao cardeal Jean-Marc Aveline, de Marselha,
a propósito do próximo ‘Encontro Mediterrânico’, no qual o Papa Francisco estará.
À pergunta «Qual poderia ser a contribuição dos cristãos diante do medo?»,
o cardeal Aveline responde:
«Perante a tentação do medo,
o contributo dos cristãos consiste sobretudo em dar testemunho da esperança
que lhes dá a sua fé em Jesus Cristo.
Uma esperança que não é ingénua, mas concreta e atenta.
Uma esperança que não é fuga, mas presença e muitas vezes resistência.
Uma esperança que não é utopia, porque traz consigo fé e caridade.»
Bem, não sendo possível continuar a ler mais,
sugiro a leitura da entrevista, publicada no passado dia 31 de agosto,
na revista La Civilta Cattolica, em francês,
pois contém reflexões que, creio, serão também de muito interesse.

6. S. Paulo, na carta que escreve aos Romanos,
alimenta uma esperança que leva precisamente à caridade.
Perante os problemas que surgem na comunidade de Roma,
eventualmente entre os cristãos de diferentes proveniências,
― devido ao regresso dos judeus que tinham sido expulsos,
no ano 49, pelo édito do imperador Cláudio ―,
Paulo faz um apelo à reconciliação entre eles,
recorrendo a uma via, que hoje até nos pode parecer caricata,
se recordarmos que há defensores da gestão ‘perpétua’ das dívidas,
e, ao mesmo tempo, tanta gente a renegociar empréstimos,
na tentativa de os pagar com melhores condições.
Precisamente, Paulo sublinha que há uma dívida contínua:
«o amor de uns para com os outros» (Rom 13,8).
Nisso consiste a síntese dos mandamentos:
«Amarás o próximo como a ti mesmo» (Rom 13,9).
Pelo que, conclui ele, o amor não lhe faz mal; antes, só lhe faz bem.
Poderíamos dizer que Paulo entoa, nesta carta de reconciliação,
o ‘hino da caridade’, tão esperançosamente desenvolvido
na primeira carta que escreve aos Coríntios (cf. 1Cor 13),
que tanto gostamos de ouvir, na liturgia ou na voz de Eunice Muñoz:

 

7. O princípio do amor ao próximo aparece concretizado
na parte do ‘discurso eclesial’ de Jesus, dirigido aos seus discípulos.
É significativo que S. Mateus desenvolva alguns aspetos
em relação a S. Marcos (cf. Mc 9,33-37. 42-47),
no que respeita a certas instruções sobre a vida em comunidade.
E isso compreende-se porque a comunidade de Jerusalém,
para a qual S. Mateus escreveu o Evangelho,
estaria a viver o que poderíamos designar por ‘tensões grupais’.
Porém, o que ele escreve é aplicável a qualquer comunidade cristã.
A correção fraterna, apresentada nas suas principais etapas,
continua a ser uma ótima via para promover a reconciliação.
Quem é que hoje não se revê nestes três passos,
descritos com uma delicadeza que supera as lógicas da fácil penalização?
Às vezes, uma palavra ou um diálogo a sós faz milagres, não é?

8. Os Conselhos Pastorais Paroquiais, por exemplo,
podem desempenhar uma missão muito relevante
na regulação das tensões comunitárias e na sanação de problemas pessoais.
A leitura sinodal dos problemas dos batizados,
além de qualificar o discernimento a partir de vários ângulos,
poderá desenvolver uma melhor ação preventiva e curativa.
O mesmo se diga dos tribunais eclesiásticos, nas diferentes instâncias,
numa sempre cada vez maior evidenciação do serviço da justiça,
segundo o exercício pastoral do Evangelho de Jesus.
Só em última instância alguém deveria ser colocado fora da comunidade.
É certo que encontrámos já a ex-comunhão nas comunidades paulinas,
mas nunca para abandonar ninguém a uma irremediabilidade
numa futura reintegração, caso a conversão se tenha operado.
Ao considerar alguém como «um pagão ou um publicano» (Mt 18,17),
Jesus não está a condenar ninguém, algo que nunca fez, ao castigo eterno.
A via da reconciliação, digamos assim, é que terá se der outra.
Como aliás sucedeu com alguns pagãos e publicanos, desde logo Zaqueu,
ou S. Mateus, autor do Evangelho do qual lemos esta passagem.

9. Surpreende que, no itinerário da correção fraterna,
Jesus conceda a prioridade ao ofensor, na atenção a dar-lhe.
É pela via da humildade que se abre a clausura da violência.
Surpreende, repito, que este seja o ‘poder das chaves’
colocado à disposição de qualquer cristão ― e não só de Simão Pedro ―
para religar, pelo perdão, os irmãos que se ofenderam.
Seja esta também uma das intenções na nossa oração em assembleia,
para superar as tensões que entre nós possam existir,
ou que existem, por exemplo, entre os irmãos de outras Igrejas.
Infelizmente, como denuncia o Patriarca Bartolomeu,
«a teologia da guerra que vem da Rússia dividiu o mundo ortodoxo».

10. Estou persuadido de que cada comunidade precisará
de uma teia e de um crivo, com Jesus no centro:
ora na resistência paciente, que resolve certos problemas com o tempo,
ora em redobrados esforços, no cuidado do grão a limpar de impurezas.
Ganhemo-nos uns aos outros pelo amor, que só faz bem.
E que, na próxima assembleia sinodal, em Braga ou, depois, em Roma,
se possa fazer, como disse o Papa, na conclusão da viagem à Mongólia:
não como um «programa televisivo», ou um «parlamento»,
mas com momentos de palava de Deus e de oração durante as sessões.

Joeira de Feijão

“Estou persuadido de que cada comunidade precisará de uma teia e de um crivo, com Jesus no centro: ora na resistência paciente, que resolve certos problemas com o tempo, ora em redobrados esforços, no cuidado do grão a limpar de impurezas.” Foto © Joaquim Félix

 

 

Joaquim Félix é padre católico, vice-reitor do Seminário Conciliar de Braga e professor da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa; autor de vários livros, entre os quais  VERNA. Este texto corresponde à homilia do passado domingo, dia 10 de setembro, XXIII Domingo do Tempo Comum na liturgia católica, 2023.

 

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