
O Papa não reprimiu os seus sentimentos e, como Jesus, chorou em público. Foto © Vatican Media.
Nunca tinha visto um Papa chorar, convulsivamente, em público nem em privado. As pessoas importantes, ou mesmo as ditas figuras públicas, são obrigadas a guardar os seus sentimentos mais dolorosos para os seus domínios privados. A atual pessoa mais notável da Igreja Católica chorou rodeada por uma multidão. Só pessoas com corações empedernidos não se sensibilizaram. Aconteceu no passado dia 8 de dezembro, na habitual homenagem à Imaculada Conceição, que se realiza, em Roma, na Praça de Espanha, junto ao monumento erigido à Mãe de Jesus, sob esta invocação.
O Papa estava a dizer “Virgem Imaculada, hoje eu gostaria de trazer-te a ação de graças do povo ucraniano…”. Neste momento, a voz embargou-se-lhe e chorou de tal forma que não conseguiu prosseguir, por alguns segundos, a leitura, tendo os milhares de pessoas presentes rompido numa salva de palmas. Mais calmo, continuou: “… do povo ucraniano, pela paz, que há muito tempo pedimos ao Senhor. Em vez disso, ainda tenho de apresentar-te a súplica das crianças, dos idosos, dos pais e mães, dos jovens daquela terra martirizada, que sofre tanto. Mas na realidade todos nós sabemos que tu estás com eles e com todos os que sofrem, assim como estavas ao lado da cruz do teu filho.”
[O momento pode ser visto no vídeo abaixo]
Pessoalmente, não tenho dúvidas de que a voz do Papa tem sido a mais incessante, e verdadeiramente sincera, a suplicar o fim da guerra declarada pela Rússia à Ucrânia. Se lhe tivesse sido permitido, já teria ido ao teatro de guerra levar conforto a todos os que estão a ser vítimas, de ambas as partes, de tão hediondo conflito armado. Já teria mediado um encontro entre os dois presidentes dos países beligerantes.
Na verdade, Francisco deve estar a sofrer imenso com este genocídio e por outros conflitos armados em curso, espalhados pelo mundo e, agora, menos falados por causa das graves implicações económicas que está a ter a guerra do Leste da Europa.
Todavia, questiono-me se esta sensibilidade do Papa, demonstrando o seu profundo humanismo, não foi o transbordar de um coração amarguradíssimo por um pontificado mais ocupado de desgostos que de alegrias. Longe de mim desvalorizar o martírio do povo ucraniano. É um sofrimento que ultrapassa o que de mais desumano pode existir na criatura dotada de racionalidade. Mas as ciências da mente provam que, por mais resilientes que sejam os seres humanos, sofrimentos acumulados aumentam os níveis de sensibilidade das pessoas.
Não teria, por isso, Francisco chorado por estar emocionalmente mais fragilizado, porque o seu coração já sangra, há muito, por traições de quem devia estar em comunhão com ele para poder manter a função que exerce que é válida na fidelidade ao Sucessor de Pedro, seja ele quem for? Por membros da alta hierarquia da Igreja, em que ele confiava, estarem envolvido em negócios financeiros sujos? Pelo isolamento em que se encontra dentro de uma estrutura cujo funcionamento, em muitos aspetos, é contrário aos ensinamentos evangélicos e do pensamento social cristão? Por desejar uma Igreja pobre e para os pobres e não ver sinais, em muitas dioceses, de que esse é o maior testemunho credível da Igreja? Por ter assumido que bastava ter havido um abusador de menores, para ficar manchado o maior desígnio da Igreja que é a defesa e o respeito pela dignidade do ser humano? Pelo ideal que alimenta, insistentemente, de uma Igreja mais Povo de Deus e não o poder discricionário da hierarquia? Pelas calúnias e ataques soezes que tem recebido, dentro e fora da Igreja, pelo meritório esforço de aproximação entre as diferentes religiões monoteístas, em particular com os muçulmanos, porque anseia a paz para o mundo?
Quando me chegaram as imagens do Papa a chorar tive um duplo sentimento: maior admiração por Francisco. Ele estava a ser verdadeiramente humano, chorando em público. Não reprimiu os seus sentimentos e, como Jesus, chorou em público. Demonstrou o que chegou a dizer: “Existem aflitos para consolar, mas às vezes existem também consolados para afligir, para despertar, que têm um coração de pedra e desaprenderam de chorar. Despertar quem não sabe comover-se com a dor dos outros”.
O outro sentimento foi o de compaixão. Quem conhece o Novo Testamento sabe que Francisco só procura que o Reino de Deus anunciado por Jesus se expanda (Mateus 10, 7) e espiritualmente não está só. Todos os dias, em todas as igrejas do mundo, se reza por ele, mas porque é uma obrigação ritual. Todavia, são mais as vozes ruidosas contra a sua ação transformadora que as que estão em seu favor dentro da Igreja. Fora dela já sinto o contrário.
Por isso, ficou-me a pergunta: Porque choraste, Papa Francisco? Não estarás a sentir o mesmo que Jesus, naquela noite derradeira no jardim do Getsémani (Mateus 26, 38)? Como aconteceu, com Ele, a tua solidão sofredora transformar-se-á numa madrugada de onde rejuvenescerá uma Igreja mais identificada com os ideais do Reino de Deus do que com os deste mundo.
Esta experiência de solidão já foi vivida em Belém da Judeia. Muitas portas se fecharam Àquele que trazia uma Boa Nova mais adequada e não destruidora da Aliança que Deus fez com o seu povo. Apenas com o conforto de Maria e José, Ele assumiu a nossa condição humana num total abandono. Papa Francisco, aconteceu com Jesus Menino o que está a suceder contigo: as pessoas mais simples são as que se tornam mais próximas. A verdade é que da solidão daquela gruta de Belém da Judeia o mundo mudou. Eu acredito que de todos estes sofridos esforços de Francisco surgirá uma Igreja onde todos podem entrar e caminhar juntos. E deixará de haver tanta indiferença.
Eugénio Fonseca é presidente da Confederação Portuguesa do Voluntariado