Porque é que precisamos de beleza?
Para captar o significado desta afirmação teremos de repensar o conceito de salvação. Nela se inclui não um ato de tentar manter de pé um castelo de cartas prestes a esmorecer, mas antes a capacidade de nos erguermos e direcionarmos para a fonte do alento e alegria para viver. Isso é a salvação.
Reenquadrando um possível entendimento desta frase permanece a estupefação com a solução apontada. Afinal, não é uma meta, uma ideologia, um projeto desenhado, mas uma abstração: a beleza. E a inerente pergunta: O que é o belo? Algo que nos chama a atenção e seduz, num plano subjetivo. Algo íntegro e puro ligado ao bem, não tanto numa aceção moral ou cerebral mas existencial de bondade.
Organizamos toda a nossa existência de forma consciente ou inconsciente, segundo padrões estéticos. Da forma como pomos uma mesa, decoramos a casa, nos apresentamos até à necessidade de contemplar uma paisagem ou obra de arte. Quando descuramos o cuidado com a estética é sinal de que alguma coisa não estará bem. É próprio do ser humano procurar a beleza, a displicência desumaniza-nos. Não foi por acaso que ao longo da História se procurou destruir cidades, pilhar monumentos, rapar cabelos ou impor rudes uniformes a prisioneiros de campos de concentração no intento de retirar a aparência humana. A destruição de uma cidade, o roubo de obras de arte ou retirar as características pessoais de um prisioneiro são atos de uma violência desmedida que despoletam uma agressividade animalesca. Uma cidade destruída, destituída dos símbolos identitários que a caracterizam, torna-se um território permeável à ocupação e conquista alheia. Um conjunto de seres humanos despersonalizados facilmente eliminam a natural empatia que lhes poderíamos ter.
Quando pedimos o pão, na oração do Pai-Nosso, poderíamos acrescentar que a beleza de cada dia nos seja dada. Contemplar e cuidar da beleza descentra-nos. É um ato altruísta, criar uma obra de arte para ser apreciada, proporcionar a alguém um tempo de pausa e contemplação. O engenho humano é o único capaz da criação artística. Desde os tempos pré-históricos que o ser humano tem necessidade de arte. Desde as pinturas nas cavernas às “excêntricas” obras de arte contemporânea, a arte sempre acompanhou a História do Homem, foi utilizada como meio de resistência política e existencial, foi censurada por regimes políticos das mais diversas ideologias. E porquê? Porque é uma forma de ativismo. Criar algo belo na opressão da fome, da perseguição, de uma guerra é um ato de resistência. A criação da beleza é afirmar que somos capazes de nos projetar para algo maior que as feridas que nos atormentam.
“A beleza salvará o mundo.” A arte de viver é a capacidade de criar beleza todos os dias. Desde o modo como nos cumprimentamos, abraçamos, ensinamos a uma criança o fascínio por observar um animal, no zelo com que cumprimos as mais monótonas tarefas diárias, na escolha das palavras que trocamos, até ao modo como cuidamos de nós próprios, sentindo-nos responsáveis por proteger a vida que nos foi dada.
Serão esses gestos que nos irão salvar do tormento da alma nos nossos dias mais sombrios. O maior dos nossos males é viver anestesiados, sem sensibilidade. Procuremos ativar os sentidos e a sabedoria do coração, confiemos na sensibilidade sem medo de nos deixar envolver por turbilhões de emoções. São preferíveis à apatia que nos envenena até à morte.
Sofia Távora é estudante de Direito e voluntária no Serviço de Assistência Espiritual e Religiosa do Hospital Dona Estefânia.
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