Porque não somos insignificantes neste universo infinito

| 26 Nov 2022

A nebulosa IC 5146 também conhecida como “Nebulosa do Casulo”, captada junto de um grande rasto de nuvens interestelares, que se estendem no lado direito da imagem. Foto © Andy Ermolli, via APOD/NASA.

A nebulosa IC 5146 também conhecida como “Nebulosa do Casulo”, captada junto de um grande rasto de nuvens interestelares, que se estendem no lado direito da imagem. Foto © Andy Ermolli, via APOD/NASA.

 

Muitas pessoas, entre as quais renomados cientistas, assumem frequentemente que o ser humano é um ser bastante insignificante, senão mesmo desprezível, no contexto da infinitude do universo. Baseiam-se sobretudo na nossa extrema pequenez relativa, considerando que o nosso pequeno planeta não passa de um “ponto azul” situado num vasto sistema solar, não mais que um grão de pó perdido algures num subúrbio de segunda categoria de uma gigantesca galáxia, que por sua vez está entre outras 300 mil milhões de galáxias, só no universo conhecido (para ter uma ideia, basta pensar que todos os grãos de areia de todas as praias da Terra não perfazem este número). Somos negligenciáveis e periféricos – dizem eles –, e toda esta imensidão é completamente indiferente à nossa existência. 

Penso que esta ideia pode ser desafiada em oito argumentos:

Primeiro: A dimensão relativa não pode, por si só, ser medida para a significância absoluta de uma coisa. A comparação só por si não nos diz nada acerca do valor absoluto de um indivíduo, ou uma baleia azul seria muito mais importante e significativa, em termos absolutos, do que um ser humano, apenas devido ao seu tamanho superior. O mesmo se aplicaria a alguns dinossauros, rochas e montanhas, planetas e até galáxias! A complexidade relativa pode dizer-nos algo, mas não o tamanho relativo apenas.

Segundo: O pressuposto da nossa alegada insignificância ontológica não é um juízo definitivo com força de lei universal, emitido por um juíz universal com acesso direto e privilegiado à natureza absoluta do universo. Por conseguinte, não pode ser absoluta e universalmente verdadeiro. No máximo, pode ser uma conjetura (provável ou não), nunca um juízo absoluto. De resto, como poderíamos nós, seres alegadamente insignificantes e sabedores de coisa nenhuma à escala universal, produzir tal juízo?

Representação em desenho da estrutura molecular da proteína registada com o código 1phw. © Jawahar Swaminathan and MSD staff at the European Bioinformatics Institute, Public domain, via Wikimedia Commons.

Representação em desenho da estrutura molecular da proteína registada com o código 1phw. © Jawahar Swaminathan and MSD staff at the European Bioinformatics Institute, Public domain, via Wikimedia Commons.

 

Terceiro: A consciência é a faculdade da natureza e do Ser para se conhecer a si mesmo a partir de dentro. Somos dotados desta faculdade (os outros animais também, embora num grau inferior, pois nós somos capazes de metacognição, isto é, podemos saber que sabemos, ou pensar que pensamos – podemos ser conscientes de ser consciência1). Na verdade, a consciência é aquilo que somos, não só uma faculdade que temos, pois é dela e por ela que emerge a nossa individualidade, ou, como Kant o punha, a nossa unidade de consciência – em suma, o que nos torna sujeitos. A subjetividade não se trata de uma realidade ilusória e cientificamente negligenciável, mas de uma realidade objetiva por direito próprio. Qualquer um de nós pode imediatamente percecioná-la e experimentá-la como tal a partir da sua própria interioridade. Ela tem portanto um valor absoluto, incomensurável e irredutível a qualquer realidade estritamente material. Assim sendo, a não ser que consideremos possível que um qualquer corpo astronómico de grandes dimensões, como uma galáxia ou um cluster de galáxias, seja também uma unidade de consciência, um sujeito, como pode ele ser ontologicamente mais significativo ou valioso do que qualquer indivíduo consciente? É que, sem a unidade que a consciência lhe confere, o que é uma galáxia em si mesma senão um vasto aglomerado de estrelas e poeira espalhado por centenas de milhares (senão mesmo milhões) de anos-luz no espaço, cujo único vínculo entre as partes parece ser a gravidade apenas? Por outro lado, a consciência humana sabe que é, e também que o Ser é. 

Quarto: As moléculas da vida são, tanto quanto sabemos, as mais complexas que existem. Proteínas, hidratos de carbono, lípidos e acidos nucleicos (ADN e ARN) são o produto mais acabado de um processo de cerca de 14 mil milhões de anos de evolução do universo. Pode ser que existam outras moléculas ainda mais complexas algures no universo, mas a nossa experiência na Terra diz-nos que complexidade bioquímica a este nível implica necessariamente vida. E vida complexa implica consciência. Talvez não seja diferente no resto do universo. Como pode então tal complexidade ser considerada inferior ou menos significativa relativamente a qualquer outro corpo cósmico estruturalmente menos complexo, ainda que infinitamente maior? Como podem então os seres humanos ser insignificantes e desprezíveis à escala do universo, se se encontram em tão avançado estado de evolução bioquímica para a consciência? 

Quinto: Se, tal como vimos em Quarto, as moléculas da vida parecem exprimir o acme da complexificação química, então surge a questão acerca da relação estreita que parece existir entre complexificação da matéria física e emergência da vida. Pois, se por toda a parte no universo, sempre que a matéria atinge um determinado grau de complexificação a vida emerge necessariamente (sendo este o processo: física para química; química para a biologia; biologia para a consciência), não deverá isto sugerir que a vida consciente é o próprio sentido da evolução geral do universo? Ora, isto a ser verdade, significa então que a consciência é a mais alta, mais significante e mais preciosa expressão do ser, o seu mais consumado desenvolvimento ontológico.  

Saturno brilha no céu noturno do planeta Terra. Esta visão deslumbrante dos anéis de Saturno e do seu lado noturno foi captada pela sonda Cassini. Foto © NASA, JPL-Caltech, Space Science Institute, Mindaugas Macijauskas, via APOD/NASA.

Saturno brilha no céu noturno do planeta Terra. Esta visão deslumbrante dos anéis de Saturno e do seu lado noturno foi captada pela sonda Cassini. Foto © NASA, JPL-Caltech, Space Science Institute, Mindaugas Macijauskas, via APOD/NASA.

 

Sexto: A extensão espacial, e por conseguinte a distância, são expressões macro da realidade espaciotemporal do universo; mas serão a sua realidade última? O conhecido fenómeno designado por emparelhamento quântico (quantum entanglement) parece sugerir que não. O facto múltiplas vezes confirmado de que duas partículas subatómicas (como fotões ou electrões) podem ser emparelhadas de tal maneira que, se uma é posta a girar, a outra instantaneamente se põe a girar exatamente da mesma maneira, independentemente da distância que as separa (em teoria, podem estar até em lados opostos do universo), sugere que, na realidade, a distância não existe. Note-se que entre ambas as partículas nada é trocado, nenhum tipo de substância comunica a uma o que se passa com a outra; não existe qualquer spooky action at distance, como Einstein dizia. 

Ora, isto para mim indicia que existe uma unidade fundamental, absoluta, unindo as duas partículas, uma unidade além do espaço e do tempo. Isto explode com a ideia de que a extensão constitutiva de um objeto (i.e. o tamanho) pode ter algum valor absoluto por si mesmo do ponto de vista da própria natureza última do universo. É que, se considerarmos bem a natureza última da realidade, somos facilmente conduzidos à intuição de uma realidade fundamental, monadológica. Ou seja, o Todo do universo (ou universos) é Um. Esta unidade fundamental – a que os filósofos sempre tenderam a chamar de “Uno” – não retira a sua significância ou valor ontológico do seu tamanho – grandeza que não lhe diz respeito, pois situa-se fora do tempo e do espaço –, mas da sua absoluta intimidade consigo próprio. 

Essa é a sua verdadeira grandeza, bem como a sua substância e natureza, pois nele não existe em absoluto qualquer mediação entre si próprio e o seu próprio ser (diga-se de passagem que isto está de acordo com a própria natureza da consciência, que é fundamentalmente um ser-para-si). A intimidade ontológica do ser-para-si é assim ontologicamente superior a qualquer outra grandeza, nomeadamente a extensão física. Esta não pode, assim, ser bitola absoluta para a significância ontológica dos seres. Muito mais importante para tal avaliação será a profundidade e intimidade do ser em si mesmo manifestado como consciência. 

Rajadas de ventos solares e explosões de partículas carregadas do Sol resultaram em várias noites gratificantes de auroras em dezembro de 2014. Na imagem, dramáticas auroras que se estendem pelo céu, captadas perto de Yellowknife, no norte do Canadá. Foto © Kwon, O Chul (TWAN), via APOD/NASA.

Rajadas de ventos solares e explosões de partículas carregadas do Sol resultaram em várias noites gratificantes de auroras em dezembro de 2014. Na imagem, dramáticas auroras que se estendem pelo céu, captadas perto de Yellowknife, no norte do Canadá. Foto © Kwon, O Chul (TWAN), via APOD/NASA.

 

Sétimo: Princípio Antrópico. Na sua versão forte, este pressupõe que as constantes físicas e demais parâmetros no nosso universo parecem estar especialmente afinados ou regulados para permitir a emergência da vida2. Uma teoria, baseada nas descobertas da física quântica3, sugere que a vida (ou a consciência, para ser exato) determina a história específica do nosso universo, apenas por existir. Com efeito, a consciência como que “escolhe” este universo específico, com as suas leis próprias, devidamente regulado para permitir a sua própria emergência. Isto passar-se-á de forma semelhante ao modo como a medição ou observação de uma partícula subatómica causa o seu “colapso”, isto é, a sua passagem da condição de onda difusa à de partícula com uma “história” específica, isto é, com uma localização ou percurso específicos. Na condição de “onda”, uma partícula pode estar simultaneamente em várias localizações possíveis, ou seguir vários percursos possíveis ao mesmo tempo, como se várias “histórias” coexistissem simultaneamente (wave function). 

Mesmo que esta teoria não seja verdadeira, ela reflete o caráter verosímil do princípio antrópico, mostrando como a ciência se vê perante a necessidade de explicar as regularidades físicas que parecem tornar o nosso universo extremamente favorável à emergência da vida. Estas regularidades efetivamente desafiam a ideia de que somos alegadamente insignificantes em face da infinitude do universo, e de que este é completamente cego e indiferente à nossa existência. É que o princípio antrópico parece colocar a vida consciente no centro da trama cósmica, ao invés de o caracterizar como um mero epifenómeno, periférico e negligenciável. 

Pessoas em Shibuya, Tóquio, Japão. Foto © nakashi, CC BY-SA 2.0 <https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0>, via Wikimedia Commons.

Pessoas em Shibuya, Tóquio, Japão. Foto © nakashi, CC BY-SA 2.0, via Wikimedia Commons.

 

Oitavo: Estamos no centro absoluto das coisas. Como tudo o resto. Afirmar que não estamos no centro do universo, nem sequer no centro da nossa galáxia, não é realmente um argumento a favor da nossa alegada insignificância. Pois, tal como acontece com o tamanho, a centralidade ou periferielidade de qualquer coisa só pode ser avaliada em relação a qualquer outra coisa. Trata-se de uma avaliação relativa ou comparativa, não absoluta. Podemos não estar no centro do universo, mas se o universo é infinito, não existe realmente um centro absoluto, não em termos de extensão espacial pelo menos. É que o centro de um universo infinito está em toda a parte, e em nenhuma parte. 

Uma famosa sentença atribuída ao filósofo grego Empédocles diz que Deus é um círculo cuja circunferência está em lado nenhum e cujo centro está em toda a parte. Por conseguinte, o facto de não estarmos no centro do universo, da nossa galáxia, nem sequer do nosso sistema solar, não diz coisa nenhuma acerca da nossa real significância. Porque não há um centro absoluto ao nível da extensão que sirva de bitola para decidir o quê ou quem está mais próximo do centro. Mas, isso não significa que não possamos postular um centro metafísico absoluto do universo. Porque, se é verdade que, na sua essência, a realidade é uma e a mesma além do espaçotempo – uno, mónada absoluta –, temos então de concluir que ela está absolutamente por toda a parte, e tudo está nela em absoluto. 

Por outras palavras, o centro absoluto de todas as coisas está absolutamente implicado em cada coisa, na raíz absoluta de cada coisa e, portanto, nada existe que não esteja exatamente à mesma distância do centro absoluto das coisas que em absoluto o constitui. Concluindo este ponto, a verdadeira centralidade não é uma questão de posição relativa, mas antes uma questão de filiação ontológica das coisas com o seu absoluto fundamento, que está em tudo e no qual tudo está. 

Em síntese, julgo que os seres humanos estão muito longe de ser insignificantes e desprezíveis neste assombroso universo em que vivemos. Nenhum ser vivo senciente o é. A nossa aparente pequenez e periferielidade não serve de medida à nossa absoluta significância e valor como seres. De facto, pode bem ser que estejamos entre os representantes do cume da evolução ontológica, situados num universo que existe para a consciência. Desde logo porque somos dotados desta faculdade absolutamente evidente e simultaneamente misteriosa de nos conhecermos a nós mesmos e ao universo. 


Notas:
1 – Descartes, “Cogito, ergo sum” (“Penso, logo existo”); Santo Agostinho, “Compreendo que compreendo”.
2 – 
Ver Britannica, The Editors of Encyclopaedia. “anthropic principle“. Encyclopedia Britannica, 14 Aug. 2013, https://www.britannica.com/science/anthropic-principle. Consultado a 5 de novembro de 2022.
3 – Ver Hawking, W. Stephen and Mlodinov, Leonard, The Grand Design, Bantam; NO-VALUE edition (January 1, 2012). 

 

Ruben David Azevedo é professor e membro do Ginásio de Educação Da Vinci – Campo de Ourique (Lisboa).

 

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