
A historiadora e jornalista Lucetta Scaraffia, numa foto de arquivo. Foto © Medol, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons
“Estou muito surpreendida que as feministas não apoiem a batalha das monjas contra os abusos, o que é muito grave”, afirma, em entrevista ao jornal catalão La Vanguardia a jornalista, historiadora e académica italiana Lucetta Scaraffia.
Professora de História Contemporânea na Universidade romana La Sapienza, hoje aposentada, Lucetta Scaraffia ficou conhecida nos meios internacionais da Igreja Católica por ter sido escolhida pelo Papa Bento XVI, em 2012, para dirigir um suplemento mensal do Osservatore Romano, intitulado Donne Chiesa Mondo (Mulheres Igreja Mundo). Mas foi sempre uma voz incómoda na Cúria Romana, tendo acabado por deixar esse projeto em 2019, sentindo falta de apoio e mesmo resistência à denúncia que empreendeu dos abusos de freiras e outras mulheres consagradas.
“Demitiu-se porque se sentiu deslegitimada”, observa Anna Buj, correspondente em Roma e no Vaticano, que a entrevista a propósito da publicação do seu novo livro, A Mulher Cardeal, entretanto traduzido em castelhano (ed. San Pablo).
Admiradora confessa do Papa Bento[i], Lucetta Scaraffia revela-se bastante crítica do pontificado de Francisco, que considera muito mediático, mas vazio. Foram dez anos de “construção mediática”, diz, mas que “não têm correspondência nem na renovação da Igreja nem na aproximação dos cristãos à Igreja”.
Do seu ponto de vista, o Papa argentino “apela muito mais aos não-católicos, que continuam não-católicos, enquanto que os católicos continuam a diminuir nas igrejas”. Acha que a reforma da Cúria gerou um “caos” que “não se sabe onde vai acabar”. E remata: Francisco “fala muito de sínodos, mas como pode ele pregar a sinodalidade quando é um monarca absoluto que não dá o exemplo?”
No que às mulheres diz respeito, o que foi feito nestes dez anos está longe de a satisfazer: desvaloriza as nomeações de mulheres para a estrutura da Santa Sé por serem em número pouco significativo (“uma para cada 30 homens”), e, sobretudo, por serem “mulheres obedientes, que não causarão problemas”. E desenvolve: “Alguma delas disse uma palavra sobre freiras vítimas de abusos? As freiras são tratadas como servas, e, até serem ouvidas, a presença destas mulheres é para fazer de conta”, dada a atenção que “neste papado se presta à imagem”.
E aponta a “verdadeira questão” que é, neste plano, para ela decisiva: “A verdadeira questão é o diaconado feminino, e sobre isto [o Papa] tem sido pelo menos ambíguo. Criou uma comissão que acabou por produzir um relatório que nunca foi tornado público, e a seguir criou outra comissão que quase nunca se reúne e não sabe como vai acabar.”
Na entrevista, Lucetta Scaraffia defende o diaconado das mulheres porque lhes permitiria assumirem “um papel reconhecido dentro da Igreja”. Mas já não é defensora do sacerdócio feminino, por defesa da tradição e porque teme que essa seria uma via de clericalização das mulheres. “Em vez disso, se elas participarem no governo da Igreja como leigas, constituem uma diversidade muito mais importante”, acredita.
Um tema abordado na entrevista é o dos abusos e violência na Igreja. Interrogada sobre os motivos de se falar mais de abusos de crianças e pouco de abuso de poder e sexual sobre freiras, como o caso do padre Marko Rupnik documenta, Scaraffia é taxativa: “[Não se fala] Porque a Igreja não quer que se fale disso, e porque estas freiras são forçadas a fazer abortos ou a usar contracetivos. Não se trata apenas de abuso sexual: para salvar a face, a Igreja contradiz as suas regras morais. É um fenómeno enorme, não só em África, mas também em Itália, em França, em Espanha, na América Latina, sempre por padres ou pais espirituais. A orientação espiritual é misturada com o abuso sexual.”
Também aqui vem ao de cima a sua distância relativamente ao Papa atual: “Ele disse coisas bonitas sobre abusos, mas depois protege os abusadores se forem seus amigos, como no caso de Rupnik – que foi excomungado pelo Dicastério para a Doutrina da Fé, encarregado de processar os abusos sexuais, e depois a punição foi levantada”.
O tema da obra[ii] que serve de pretexto para a entrevista é o de um papa oriundo da América Central que decide nomear para o posto de secretária de Estado do Vaticano uma mulher, fazendo-a também cardeal. O assunto foi objeto de uma pergunta de Anna Buj: “O seu livro é ficção, mas até que ponto se deseja que um dia possa haver uma mulher cardeal?”
“Não creio – respondeu a historiadora – que o bom Papa alguma vez venha a dar às mulheres o papel que elas merecem. (…) [São elas que] devem forçar as hierarquias eclesiásticas a aceitá-las, a ouvi-las, a respeitá-las, algo que ninguém faz, nem mesmo o Papa Francisco. Ninguém na história alguma vez deu às mulheres o espaço que elas merecem.”
E acrescentou: “Até ao século XX houve cardeais que não foram ordenados sacerdotes. Seria possível criar cardeais mulheres, sem ter de enfrentar o problema do sacerdócio feminino, e talvez não para serem eleitas, mas para participarem na eleição do papa, seria muito importante. A Igreja atual não está preparada para nada, mas lancei [a ideia] aqui como uma proposta. É preciso pedir muito para obter algo.”
Notas
[i] O penúltimo livro editado pela autora é Joseph Ratzinger / Benedetto XVI, La Chiesa è viva, lo spirito di una vera riforma. Roma: Edizioni di Storia e Letteratura, 2022.
[ii] Lucetta Scaraffia, La mujer cardinal. Madrid: San Pablo, 2023 https://libreria.sanpablo.es/libro/la-mujer-cardenal_249131