Costuma dizer-se que a memória dos povos é curta. Depressa esquecemos as páginas douradas do passado, mas ainda mais depressa esquecemos as negras. Mas conhecer a história colectiva dum país continua a ser o melhor antídoto para evitar cair nos mesmos erros, sempre que as oportunidades espreitam.

” Costuma dizer-se que a memória dos povos é curta. Depressa esquecemos as páginas douradas do passado, mas ainda mais depressa esquecemos as negras.” Foto © Inga Gezalian / Unsplash
Passados que são quarenta e sete anos sobre a mudança de regime, pela primeira vez Portugal ouve um Presidente da República aproveitar a cerimónia oficial da efeméride no Parlamento para apelar a uma reflexão serena sobre a história do país, restaurando na memória colectiva a totalidade do que fomos e somos. O apelo claro é a que sejamos capazes de assumir tudo, sem “autocontemplações globais indevidas” ou “autoflagelações globais excessivas” e que tal exercício nos sirva de lição para o presente e o futuro.
Todos sabemos que não se faz história no dia seguinte a um evento. É necessário um distanciamento cronológico e emocional suficiente para se poder ser objectivo na análise dos acontecimentos históricos. Muitas vezes a simples circunstância de os protagonistas ainda estarem vivos dificulta uma abordagem de isenção ao fenómeno em estudo.
Marcelo Rebelo de Sousa percebeu que o actual espectro político-partidário não só permite como exige um olhar desapaixonado sobre a história de Portugal, incluindo a saga dos Descobrimentos e a colonização, e muito em particular o anterior regime, incluindo a Guerra Colonial, a implantação da democracia e a descolonização. Ele sabe que o emergir da extrema-direita, assim como a captura da direita democrática pela tentação racista e fascista, aliada ao desconhecimento que as novas gerações revelam de como era a vida dos portugueses durante o salazarismo pode conduzir a uma ruptura democrática, ou pelo menos a uma divisão complicada na sociedade portuguesa. Daí a importância do que denominou uma “serenidade lúcida”.
Só em democracia é possível ouvir um alto magistrado da nação assumir que a história do seu país é feita de glórias e fracassos, não se colocando numa barricada para acusar os adversários políticos dos fracassos e assumindo as glórias para si. Por muito que possa não parecer, só numa democracia consolidada é possível a um presidente confessar que é filho do regime ditatorial derrubado em Abril de 1974: “filho de um governante na ditadura e no império que viveu o ocaso tardio inexorável desse império, e viveu depois, como constituinte, o arranque de um novo tempo democrático, charneira entre duas histórias da mesma História.”
Costuma dizer-se que a memória dos povos é curta. Depressa esquecemos as páginas douradas do passado, mas ainda mais depressa esquecemos as negras. Mas conhecer a história colectiva dum país continua a ser o melhor antídoto para evitar cair nos mesmos erros, sempre que as oportunidades espreitam e os radicalismos de esquerda e direita afloram no campo político e ideológico.
A física demonstra que para cada acção existe sempre uma reacção. Na arena política a resposta a uma dada acção pode ser uma resistência por reacção. Aquilo que Marcelo veio propor foi coisa diferente, em vez de resistência, resiliência, isto é flexibilidade. A resistência ou reacção pode ocasionar a ruptura dos materiais, mas a flexibilidade não. Em suma, é tempo de nos adaptarmos todos a uma assumpção de toda a história portuguesa, atendendo aos contextos em que ela se desenrolou, seja a fase da Expansão e da colonização, seja o período da monarquia absolutista ou constitucional, o tempo da I República, do Estado Novo ou da revolução, da democracia ou da descolonização. A velha casa portuguesa é feita de todas estas divisões e muitas mais. O que somos resulta do que fomos, mas se não soubermos tratar os mosaicos da história nunca conseguiremos projectar-nos no futuro.
Tal como a história da humanidade, também o percurso dos povos, dos países, das instituições e das religiões é sempre acidentado e inclui momentos de degradação mas também de redenção. Os ingleses foram esclavagistas mas acabaram com a escravatura, os americanos foram segregacionistas mas acabaram por aprovar a lei dos direitos civis, mesmo à custa de uma convulsão social. Os sul-africanos criaram o odioso apartheid, mas também foram eles que o mataram, os franceses fizeram a Revolução, sofreram o jacobinismo e toleraram Napoleão. Apesar dos erros, dramas e traumas nenhum povo deixou de olhar sempre em frente.
Já fomos imperialistas – dividimos o mundo com os espanhóis – e um dia o ciclo do império fechou-se. A Britain rules the waves acabou um dia e a América está em declínio. Não há que ter medo de olhar para o retrovisor e ver o que ficou lá atrás com o devido distanciamento, pois é isso que nos ajuda a construir um futuro sem cair nos mesmos erros. Até porque sem retrovisor a condução torna-se muito mais perigosa.
José Brissos-Lino é director do mestrado em Ciência das Religiões na Universidade Lusófona, coordenador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo e director da revista teológica Ad Aeternum; texto publicado também na página digital da revista Visão.