Na intervenção que foi convidado a fazer na conferência sobre os abusos sexuais de dia 10, o jornalista João Francisco Gomes teceu várias críticas ao modo como a Igreja Católica se relaciona com os média em Portugal. Depois de ter publicado esse texto na íntegra, e também tendo em conta a proximidade do Dia Mundial das Comunicações Sociais, que a Igreja Católica assinala neste domingo, 29, o 7MARGENS convidou vários jornalistas que têm acompanhado a informação religiosa com alguma regularidade a escrever um depoimento sobre o tema. A seguir, o contributo de Manuel Vilas Boas, jornalista da TSF, onde acompanha a informação religiosa.

Manuel Vilas Boas, jornalista da TSF: a Igreja Católica continua a esquecer os agentes de comunicação da Palavra. Foto © DR
A Comunicação Social sob a tutela da Igreja Católica em Portugal cresceu a olhos vistos, no último meio século, depois da explosão – ainda que moderada, entre nós – do Concílio Ecuménico Vaticano II, ocorrido, em Roma, de 1962 a 1965.
O dinamismo da Conferência Episcopal estava, então, sujeito e confundido com a personalidade do cardeal Cerejeira, patriarca de Lisboa, supostamente “patrão” da Igreja portuguesa e mentor também do Estado Novo.
Com tipografia própria, imprimia-se, em Lisboa, a voz oficial da Igreja, o Novidades, sob a batuta de Moreira das Neves. Episodicamente, surgiu depois do 25 de Abril, o jornal Terra Nova, sem húmus para o futuro.
No éter, a Igreja portuguesa exprimia-se na Emissora Católica, apenas nas ondas da religião tradicional, no seu início, em 1937. O fundador, Mons. Lopes da Cruz foi o herói do tempo. Dos Açores chegaria, em finais dos anos 1960, António Rego, a fazer mecha nos estúdios da Rua Capelo, ao Chiado, e na Emissora Nacional, na rua do Quelhas. Por muito tempo, estiveram nessa roda Lopes Morgado, Carlos Capucho e, na redacção do Porto, Eloy Pinho. É de elementar justiça juntar aqui os nomes de Raul Machado, o cardeal António Ribeiro, Videira Pires, João de Sousa e Luís de França, entre outros, na RTP. A TVI foi um pesadelo para a Igreja Católica, apesar da presença sempre inteligente e esforçada do padre Rego. A Agência Ecclesia, chegada com algum atraso nos anos 90, debate-se, como é norma nacional na área da Informação, com a escassez de meios humanos e técnicos. A mesma agência luta ainda por uma maior divulgação dos seus conteúdos noticiosos, através de correspondentes diocesanos. A Ecclesia intenta tornar mais próxima a informação que lhe chega do Vaticano, dirigida aos falantes da língua portuguesa.
Não é de menor importância, no conjunto da Comunicação Social da Igreja Católica, a imprensa regional, expressa numa volumosa quantidade de jornais e boletins, alguns vestidos de relevante profissionalismo. Junta-se a esta imprensa, a Associação de Rádios Católicas espalhadas pelo país. Ainda a Logomédia, uma iniciativa suportada pelos institutos religiosos, chegou, entre nós, na era do audiovisual, consumida, depois, pelo digital de todas as pressas.
A tempo, julgo ser urgente a investigação da história da totalidade dos órgãos de Comunicação da Igreja portuguesa, sobretudo, a Rádio Renascença, dramaticamente atingida durante o PREC [Processo Revolucionário Em Curso], após a Revolução de Abril de 1974.
À medida que era assumido, em Portugal, o espírito conciliar, a RR transformou-se, progressivamente, nos anos 70 e ainda antes do 25 de Abril, numa “vanguarda de liberdade”, pode ler-se num artigo de Nelson Costa Ribeiro, docente na Universidade Católica, publicado na revista Lusitânia Sacra, no ano 2000. A tratar esta mesma questão ficou o registo na Agência Ecclesia, em 4 de Abril de 2012, de uma entrevista ao padre Lopes Morgado, membro da equipa de padres que desempenhou funções na RR, como realizador de programas. A entrevista, por escrito, foi concedida a Paula Borges Santos, para o mestrado em História Contemporânea sobre “A Igreja e a Revolução”, na Universidade Nova de Lisboa, em 2001. Nessa entrevista, entre outras afirmações pertinentes, Lopes Morgado, padre capuchinho, referia que “à luz deste processo da RR foi possível perceber muitas contradições e ambiguidades que atravessam a Igreja e o país, de então, aos vários níveis”.

Manuel Vilas Boas: “Sublime a provocação de Francisco: ‘É preciso gastar as solas dos sapatos’.” Foto: Direitos reservados
“Arder nos próprios olhos”
Em pleno século XXI, depois de Gutenberg, Marconi, MacLuhan e, agora, Mark Zuckerberg, não é sustentável que a preocupação da Igreja Católica continue a apostar na especialização dos seus quadros em Direito Canónico e mesmo em Teologia Dogmática e deixe no esquecimento os agentes de comunicação da Palavra. O que é que rescende de uma liturgia impressiva se não há uma comunicação perfeita da mensagem ou mesmo do teor dos debates em que se tenha de participar? Não me convencem também os televangelistas repassados dos ingredientes obsessivos da publicidade. Mas quem tem a missão de transmitir a densidade da mensagem religiosa, não pode convencer-se de que é eficaz, por ser artista ou ter acabado um qualquer curso académico. O meu velho amigo e professor Pierre Babin, já desaparecido, dizia que a mensagem essencial do cristianismo tem de arder nos próprios olhos para poder passar, sem perda de calor, para o receptor. Quem passa somos nós – ou não passamos.
Outra coisa ainda é a desconfiança que vai permanecendo, em geral, na hierarquia religiosa portuguesa. Como se os jornalistas tivessem lepra ou andassem vestidos de perversão. Quem não deve não teme. Água mole em pedra dura poderá fazer que a deontologia regresse com o seu a seu dono. O anticlericalismo só pode rimar com clericalismo ou mesmo carreirismo, epítetos com que Francisco distingue os seguidores dessas modalidades. Porque há também jornalistas guardadores do seu sigilo profissional. E bispos que respeitam o primeiro e o segundo mandamentos.
“Aí vem ele”
Tenho ainda na memória, dos anos 1980, o alvoroço que se levantava, na assembleia plenária do Episcopado, quando chegava, ao Santuário de Fátima, um repórter ido de Lisboa, do Diário de Notícias, o mais difundido jornal português, na época. “Aí vem ele!”, era como alguns recebiam António Cadavez, o mensageiro das famigeradas más notícias da Igreja. Não é muito tranquila esta evocação. Fica como homenagem a quem sofreu na pele o desprezo profissional.
O Papa Francisco tem um exemplar comportamento com a Comunicação Social. Depressa percebeu, também ele, que não é com fel que se apanham moscas. Já diversas vezes exprimiu o respeito que nutre pelos jornalistas. Tem em seu redor uma excelente equipa que inclui os italianos Paolo Ruffini, prefeito do Dicastério para a Comunicação, e Matteo Bruni, director da Sala de Imprensa do Vaticano, que dão eficácia e difusão às múltiplas mensagens que permanentemente emite para o todo o mundo.
No ano passado, o Papa argentino foi particularmente feliz com o tema que sugeriu para o Dia Mundial das Comunicações Sociais da Igreja. “Vem e verás – encontrando as pessoas onde estão e como estão”. Sublime a provocação de Francisco: “É preciso gastar as solas dos sapatos.” Neste 56.º Dia das Comunicações Sociais, novo tema surpreende: “É preciso escutar com o ouvido do coração.” Para fechar, não aborrecerá, como nos antigos sermões um breve naco de latim, Nolite habere cor in auribus, sed aures in corde (Não tenhais o coração nos ouvidos, mas os ouvidos no coração).
Uma história pessoal
Foi sobre o espectro da fome no mundo que vi, em Maio de 1968, preto no branco, o primeiro artigo publicado, na revista O Missionário Católico, agora intitulada Boa Nova. Nesse tempo “puxava por mim” a sensibilidade ao mundo, que descobria na modernidade emergente. Foi uma zanga interna, no “Probandato” – uma espécie de noviciado –, que me precipitou para o jornalismo, cujo curso concluí na Universidade de Lisboa.
Entrei em controvérsia, em 1976, quando estava em Lyon, no mundo audiovisual da Universidade Católica, sob o ideário de Marshall MacLuhan, engolido posteriormente pela era digital. Em finais dos anos 1970, tinha o meu nome na ficha técnica do 70X7, da RTP, e também na RDP e ainda no semanário O Jornal, substituído pela Visão. Entre demissões sistemáticas e afastamentos calculados, sobrevivi na TSF, onde continuo, desde os primórdios da estação, e desde há 15 anos responsável pela edição dos Encontros Com o Património. Sempre com o registo crítico, doa a quem doer. Tenho um comentário à morte de S. Óscar Romero, na nota de despacho, da então Rádio Difusão Portuguesa. Vera Lagoa era minha excessiva devota, enquadrando-me, numa local, a que chamou “Franjas do Abade”, no seu avinagrado O Diabo. Fui também, então, objecto de uma petição na Assembleia da República, depois do saneamento que sofri na RDP. Alguma história pessoal, porventura esquecida, que não nasceu ontem. Trago comigo a atenção que sempre dei à actualidade religiosa e não só no país.
Alguns passos desta história, aqui recordados, foram dados por quem determinantemente decidiu assumir a incomodidade de chamar sua a liberdade, quando estava em jogo o complexo pensamento de uma instituição amarrada a um direito indefectível, a uma moral rígida e dogmas a esmo. Admita-se que não é, para todos, fácil trabalhar neste território. Nem quem habita a hierarquia nem quem tenta sobreviver em mar alteroso. Com meio século de experiência nestas áreas, surpreende-me sempre a pouca “fé” dos responsáveis da Igreja no universo da Comunicação Social. Endémica e pouco inteligente esta cultura arrasta atrás de si outros dados que alimentam esta instituição, estruturalmente avessa à transparência.
Manuel Vilas Boas é jornalista, trabalhando actualmente na TSF.