Novo livro de Timothy Garton Ash

Pré-publicação de “Pátrias”: O Nosso Tempo

| 26 Jun 2023

Pátrias, Timothy Garton Ash, EuropaLea Ypi, da London School of Economics, disse sobre este livro que ele é «uma comovente carta de amor à Europa», combinando memórias, análise política e crítica social numa reflexão sobre o futuro de um continente ainda assombrado pelo passado.»

Pátrias, de Timothy Garton Ash, recorda os percursos do autor, que tinha 17 anos quando o Reino Unido aderiu à Comunidade Económica Europeia e 64 quando o país deixou a União Europeia. Nos anos intermédios, o professor de Estudos Europeus da Universidade de Oxford, Senior Fellow da Hoover Institution da Universidade de Stanford e colunista do Guardian, viveu intensamente a política europeia, testemunhando algumas das cenas mais marcantes da sua história, entrevistando muitos dos seus protagonistas e analisando o modo como se transformou a vida dos europeus comuns de todo o continente. 

É disso que é feito também este livro de um dos importantes pensadores contemporâneos da identidade europeia. E que sucede a uma dezena de obras de escrita política ou «história do presente», entre os quais The Magic Lantern: The Revolution of ’89 Witnessed in Warsaw, Budapest, Berlin, & Prague; The File: A Personal History (um relato autobiográfico da investigação do conteúdo do seu ficheiro na Stasi após a queda da RDA); In Europe’s NameFacts are Subversive e Liberdade de Expressão – Dez Princípios para um Mundo Interligado, publicado pela Temas e Debates em 2017. Entre os numerosos prémios e distinções que recebeu, destacam-se o Somerset Maugham Award, o Prix Européen de l’Essai, o George Orwell Prize e o International Charlemagne Prize da cidade de Aachen.

O 7MARGENS reproduz a seguir, em pré-publicação, o prólogo deste livro, que nesta terça-feira, 27, será apresentado em Lisboa, numa sessão com entrada sujeita a convite e inscrição prévia e que contará com a presença do autor e a apresentação da editora da Temas e Debates, Guilhermina Gomes.

 

Timothy Garton Ash

Timothy Garton Ash. Foto: Direitos reservados

Estou sentado, numa pequena sala de estar, com a família francesa que me acolhe a olhar para um pequeno ecrã de televisão a preto-e-branco, no meio dos cheiros pouco familiares do fumo do tabaco Gauloises e de café forte. Tenho catorze anos, estou inserido num intercâmbio escolar, e ajudo a traduzir. «Armstrong il dit: un petit pas pour moi, un grand pas pour l’humanité!». Pouco depois, uma figura pouco nítida, envergando um fato espacial, está a dar saltos com gravidade quase nula pela superfície da Lua, uma cena perfeitamente familiar para mim devido ao livro de Tintim Explorando a Lua. É difícil dar uma ideia de quão distante estava a Europa continental para um estudante inglês em 1969. Não direi que França parecesse tão longe como a Lua, mas era tudo aquilo que os ingleses condensaram tradicionalmente na palavra «estrangeiro». Lá, as pessoas comem rãs, andam de motorizada e têm montes de relações sexuais. Aconteça o que acontecer, não bebas água. Chegar à cidade de La Rochelle, na costa atlântica, implicara uma viagem que parecia não ter fim, de autocarro, metropolitano, comboio, ferry (um enjoo violento), comboio e, de novo, autocarro. O meu passaporte britânico novo em folha, teso e de um azul muito escuro fora examinado com atenção e carimbado no posto da fronteira. No meu bolso, tateava umas notas francesas, novas em folha e enormes. Telefonar para casa era um procedimento complicado que implicava trocar impressões, em mau francês, com uma telefonista através de uma linha fixa cheia de crepitação («Peut on reverser les charges?»).

Vinte anos depois, estava num comício de dissidentes em Budapeste, a autografar exemplares de uma edição em língua húngara dos meus ensaios sobre a Europa Central. Foi naquele ano dos prodígios, 1989. Liberdade e Europa – as duas causas políticas que me eram mais queridas – estavam a avançar de braço dado, ao som da Nona Sinfonia de Beethoven, anunciando uma revolução pacífica que iria iniciar um novo capítulo na história europeia e mundial. Agora, já nenhuma parte do continente era «estrangeira» para mim. Vivendo no paradoxo que condensa o que é ser um europeu contemporâneo, eu estava em casa no estrangeiro.

De tal modo em casa, de facto, que um dos meus amigos húngaros se voltou para mim, enquanto regressávamos pelas ruas quentes e sensuais de Budapeste, e afirmou: «Deves ser descendente de Sholem Asch!».

«Não», retruquei, um pouco surpreendido.

«Então, como é que tens tanto interesse pela Europa Central?» Como se fosse de alguma forma necessária uma explicação genética para estar envolvido em termos emocionais com uma outra parte da Europa.

Cartaz da iniciativa “Juntos Pela Europa”.

 

As nossas identidades são dadas, mas também se fazem. Não podemos escolher os nossos pais, mas podemos escolher em quem nos tornamos. «Basicamente, sou chinês», escreveu Franz Kafka num postal dirigido à namorada. Se eu disser que «basicamente» sou da Europa Central, não estou a reclamar, em termos literais, uma descendência do escritor ídiche centro-europeu Asch, mas a proclamar uma afinidade eletiva.

Uma vez que o local onde nasci é Wimbledon, Inglaterra, nasci, sem dúvida alguma, na Europa e, por conseguinte, nesse sentido rudimentar, nasci europeu. Os cartógrafos, desde Eratóstenes há cerca de dois mil e duzentos anos, sempre puseram a Grã-Bretanha na Europa, uma região contraposta à Ásia e a África naquela que, com toda a probabilidade, é a mais antiga subdivisão mental contínua do mundo. Desde que existe um conceito geográfico de Europa, as nossas ilhas vagamente triangulares fizeram parte dela, mas não «nasci europeu» no sentido mais forte de ter sido educado para pensar em mim como um deles.

O único momento em que a minha mãe se referia a si mesma como europeia era quando recordava a sua juventude na Índia sob domínio britânico, onde nascera como filha do Raj. «Como era europeia», dizia-me, recordando, feliz, alguns meses românticos passados na juventude, em Nova Deli, no final da Segunda Guerra Mundial, «ia passear a cavalo de manhã cedo». Na Índia, os ingleses autointitulavam-se europeus. É apenas no seu país natal que ainda gostam, com frequência, de negar uma verdade que parece autoevidente a qualquer pessoa que os observe a partir de Washington, de Pequim, da Sibéria ou da Tasmânia.

Nunca ouvi o meu pai falar de si mesmo como europeu, embora a sua experiência de formação tivesse sido desembarcar numa praia da Normandia com a primeira vaga de soldados britânicos no Dia D e combater com os exércitos de libertação por toda a Europa Setentrional até ter celebrado, em silêncio e exausto, o Dia da Vitória na Europa, num carro de combate, algures numa planície do norte da Alemanha. Diz-se que um dos seus primeiros-ministros conservadores preferidos, Harold Macmillan, comentou, referindo-se ao lendário Presidente francês Charles de Gaulle, que «ele diz Europa e quer dizer França», mas isso também era verdade em relação aos ingleses do tipo do meu pai. Quando dizem Europa querem dizer, em primeiro lugar, França, como os ingleses haviam feito durante pelo menos seis séculos, desde que a Guerra dos Cem Anos moldou as identidades nacionais de França e Inglaterra, cada uma contra a outra.

Para o meu pai, a Europa era definitivamente estrangeira e a União Europeia era um daqueles «truques dolosos» que os patriotas britânicos são exortados, pelo nosso hino nacional, a frustrar. Uma vez, dei-lhe um grande euro de chocolate pelo Natal e ele devorou-o rapidamente, rangendo os dentes com um deleite teatral. Tendo sido um conservador ativo ao longo de toda a vida, na velhice passou-se, durante um breve período e para o meu horror, para o UKIP, o Partido para a Independência do Reino Unido. Caso ainda estivesse vivo em 2016, teria votado, sem a menor dúvida, a favor do Brexit.

BREXIT

Foto © Christoph Scholz /Wikimedia Commons

 

Sinto-me abençoado pela sorte histórica de ter crescido em Inglaterra, um país que amo; mas esse facto geográfico não fez de mim um europeu. Tornei-me um europeu consciente algures entre essa primeira inalação, nos meus tempos de estudante, de fumo de cigarros Gauloises, em 1969, e a sessão de autógrafos na Budapeste revolucionária, em 1989. A entrada do meu diário referente ao dia 12 de agosto de 1977, uma sexta-feira, regista um serão passado numa pizaria de Berlim Ocidental com Karl, um «eletricista, guia de filmes e taxista» austríaco, que a minha versão de jovem de vinte e dois anos snobe e formado em Oxford descreve como «um concidadão europeu reconhecivelmente civilizado». (Não podia ter um parceiro incivilizado para comer uma piza, pois não?) Apesar de tudo, um concidadão europeu.

Este livro é uma história pessoal da Europa. Não é uma autobiografia. Pelo contrário, isto é história ilustrada pela memória. Recorro aos meus diários, cadernos de apontamentos, fotografias, recordações, leituras, coisas que vi e ouvi ao longo do último meio século, mas também às lembranças de outros. Por isso, quando falo em «história pessoal», não estou a querer dizer apenas «minha»; estou a referir-me à história tal como foi vivida por indivíduos e é exemplificada pelas suas histórias. Cito as minhas conversas com líderes europeus quando isso ajuda a esclarecer a história, mas também o faço em relação a muitos encontros com as chamadas pessoas comuns, que amiúde são seres humanos mais notáveis do que os seus líderes.

Visitei ou revisitei alguns locais para ver pessoalmente, como os jornalistas fazem. Também recorri às melhores fontes primárias e aos trabalhos académicos mais recentes, como fazem os historiadores. Ao contrário das reportagens e comentários que escrevi quando as coisas aconteceram, aqui recorro plenamente à análise retrospetiva. Dizem que a visão retrospetiva tem uma acuidade perfeita, 20–20, e embora a visão do início dos anos 2020 esteja longe de ser perfeita, algumas coisas tornaram-se mais claras.

Esforço-me sempre por ser exato, verdadeiro e justo, mas não reivindico ser exaustivo, imparcial ou objetivo. Um jovem escritor grego pintaria uma Europa diferente, tal como o fariam um finlandês idoso, um nacionalista escocês, um ambientalista suíço ou uma feminista portuguesa. Os europeus podem ter pátrias múltiplas, mas ninguém se sente em casa, do mesmo modo, em todas as partes da Europa.

Se os nossos locais são diferentes, o mesmo se passa com os nossos tempos. Alguns dos meus amigos polacos, por exemplo, estiveram a agir «na clandestinidade» durante um período de intensa repressão, no início da década de 1980, usando pseudónimos, trocando furtivamente de apartamentos durante a noite e enviando mensagens cifradas para todo o mundo, como os membros do movimento clandestino polaco de resistência à ocupação nazi, durante a Segunda Guerra Mundial. Numa viagem que fiz para os visitar, anotei no meu diário: «partida de Heathrow: 1984, chegada: 1945». Gerações diferentes podem habitar tempos diferentes, mesmo quando vivem no mesmo local. O meu 2023 não é o 2023 dos meus alunos. Todos têm o seu «nosso tempo» próprio.

A Europa numa fotografia de satélite feita à noite.

 

Assim, se existem hoje cerca de oitocentos e cinquenta milhões de europeus – usando uma definição ampla de Europa, que inclui a Rússia, a Turquia e o Cáucaso –, então há oitocentos e cinquenta milhões de Europas individuais. Diga-me qual é a sua Europa e eu dir-lhe-ei quem é, mas mesmo esse enquadramento não é suficientemente amplo. A identidade é uma conjugação das cartas que nos são dadas e do que fazemos com elas. Os europeus, que têm uma tendência forte para a autossatisfação, também precisam de se ver através dos olhos dos não europeus, sobretudo na grande parte do mundo que sofreu o domínio colonial europeu.

No entanto, embora tenhamos as nossas eras pessoais e as nossas próprias Europas, estas estão localizadas dentro de quadros temporais e espaços partilhados. A Europa dos dias de hoje não pode ser entendida sem recuarmos até àquele período que Tony Judt condensou no título da sua história da Europa desde 1945: Pós-guerra. Mas imbricando-se e, em alguns aspetos importantes, substituindo esse enquadramento do pós-guerra encontra-se a Europa do pós-Muro – a que surgiu na sequência da queda do Muro de Berlim, a 9 de novembro de 1989, do desaparecimento da União Soviética, em dezembro de 1991, e, com ele, da divisão, gerada na Guerra Fria, do nosso continente em dois blocos hostis. Nas páginas seguintes, apresento tanto um relato pessoal como uma interpretação da história da Europa nestes quadros temporais imbricados do pós-guerra e do pós-Muro.

O período do pós-Muro da Europa não foi um tempo de paz ininterrupta. Ele foi pontuado pela desintegração sangrenta da ex-Jugoslávia, nos anos 1990, pelas atrocidades terroristas em muitas cidades europeias, pela agressão da Rússia contra a Geórgia, em 2008, pela sua tomada da Crimeia, em 2014, e pelo conflito armado subsequente e ainda em curso na Ucrânia oriental. Apesar disso, para a maioria dos europeus, este período também poderia ser descrito como a Paz dos Trinta Anos, que chegou ao fim com a invasão russa em grande escala da Ucrânia, a 24 de fevereiro de 2022, dando início a uma guerra a uma escala e de um horror que não haviam sido vistos na Europa desde 1945. E é em 1945 que a nossa história tem de começar.

 

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