
Capa da edição portuguesa do livro do Papa Francisco Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé? (ed. Publicações Dom Quixote)
A 27 de março do ano passado – completa-se sábado próximo um ano –, o Papa Francisco protagonizava na Praça de São Pedro um momento solitário de oração pela humanidade. Um “gesto planetário” e uma “oração de libertação” que tinha sido inicialmente sugerido pelo padre Marco Pozza, capelão da prisão Due Palazzi, de Pádua. Francisco assumiu a ideia e o gesto marcou o dia e ficou como uma das imagens simbólicas deste ano de pandemia.
“A palavra precisa sempre do silêncio. E o silêncio só é eloquente quando ecoa a palavra”, escreve Paolo Ruffini, prefeito do Dicastério para a Comunicação, do Vaticano, na apresentação do livro Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé? que, recolhendo fotografias desse momento e textos do Papa ao longo deste ano, acerca da situação que o mundo está a viver, pretende resgatar o “humilde poder” da oração, como se escreve no livro, através das palavras, dos gestos e das imagens.
É a introdução da primeira parte, da autoria de Paolo Ruffini, que o 7Margens aqui publica, em exclusivo para Portugal. O livro será posto à venda em todo o mundo no próximo dia 24, quarta-feira. A edição portuguesa é das Publicações Dom Quixote.
* * *
O que ocorreu no dia 27 de março na Praça de São Pedro?
Ocorreu uma coisa simples e grandiosa. Um momento extraordinário de oração uniu o mundo. As imagens eram poderosas, dramáticas. Muitos se perguntavam sobre o que tinham visto. Mas o importante era invisível aos olhos.
Muitos procuraram na forma uma resposta que, no final, não encontraram. Na verdade, nunca entenderemos o poder daquele momento utilizando os tradicionais instrumentos de análise. Seria como pensar em entender uma poesia com as regras da métrica.
Vivemos num tempo que nos pode cegar. Um tempo de olhares curtos e míopes, incapazes de ver o essencial das coisas: a dor transfigurada do mundo, a redescoberta da própria fragilidade, a necessidade de olhar além, e de recorrer a Deus.
Não há́ respostas para perguntas mal colocadas. Por isso é necessário deslocar o foco da questão. De onde vem a necessidade de rezar? Onde está a extraordinariedade daquele 27 de março? Na liturgia? Na sua cobertura televisiva? Ou na verdade que o rito representou?
Há́ semanas que parecia haver caído uma noite sem perspetivas de amanhecer. Há́ semanas que o mundo olhava para Roma, para o Papa, para encontrar nas suas palavras uma resposta que não fosse apenas a contagem das vítimas. Há́ semanas que Francisco tinha aberto as portas da pequena capela de Santa Marta ao mundo inteiro para que rezassem com ele durante a missa e ouvissem o seu comentário sobre as leituras. Há́ semanas que ele se perguntava como acompanhar esta travessia no deserto com atos simbólicos capazes de iluminá-la: a peregrinação solitária na Via del Corso para visitar o milagroso Crucifixo; a oração à Salus Popoli Romani; a recitação do Pai Nosso por todos os cristãos no dia em que muitas Igrejas recordam o anúncio à Virgem Maria da Encarnação do Verbo. Assim, tomou forma a ideia de um momento extraordinário de oração.

O primeiro a falar publicamente sobre esta oração foi o capelão do presídio Due Palazzi de Pádua, padre Marco Pozza, numa transmissão de TV da Conferência Episcopal Italiana na RAI 1, o principal canal de televisão italiano.
As suas palavras foram: «Eu sou o último sacerdote do planeta. Vivo dentro de uma prisão com pessoas que faliram na vida. Peço ao Papa Francisco um gesto forte… Uma Statio Orbis, que às vezes é feita. Peço-lhe que escolha o dia, a hora, a modalidade. Talvez sozinho na Praça de São Pedro, ou dentro da Basílica… para que peça a Deus uma oração de libertação, uma missa, alguma coisa… Peço-te, Papa Francisco, faz um gesto planetário. Pede à Igreja que pare, pede ao mundo inteiro que fique ao teu lado. […] Tens o poder da palavra, tens o poder do símbolo. Faz- -nos compreender que Cristo está presente neste momento, dizendo-nos algo. Tu és a ponte para nós… não nos deixes sozinhos.»(1)
No mesmo dia, no seu blogue, o padre Marco escreveu:
«Papa Francisco, essa noite sonhei contigo: era de uma evidência clara. E, ao teu lado, brilhava a lâmpada de Maria. Eu vi-te saindo, com passos suaves, da Casa Santa Marta. Ave Maria, gratia plena, Dominus tecum tu repetias com o teu inimitável sotaque argentino. Ela, que estava na tua frente, abria as portas de par em par: todas eram blindadas. Foste com Ela à Praça de São Pedro, até aos pés daquele obelisco que, para mim, sempre me pareceu um indicador apontando para o Alto. A Praça estava vazia, deserta, insolitamente em estado de sítio. E lá, no meio, tu ajoelhaste-te no chão. Ficaste lá por muito tempo, em silêncio, de mãos unidas, com aquele traço místico que encontro em ti quando rezas. Tu estavas lá, enquanto o mundo inteiro − dentro de casa – te seguia. Milhões de câmaras apontadas para o teu rosto, o rosto de Pedro, e todos os jornalistas silenciosos, surpresos e mudos. O mundo, ao saber que estavas na Praça, parou para olhar. E, olhando para ti, olhavam para Ele. Tu, ali de joelhos, eras uma ponte: chamam-te Pontífice, não por acaso. Pontífice-máximo: portanto, muito mais que a ponte de Brooklyn ou a que será́ construída em Génova. Tu és a Ponte-de-Deus. E dali, enquanto rezavas, vi Maria com a mão na tua cabeça. É o gesto que muitas avós, no norte da Itália, fazem aos seus netos antes de saírem de casa: “Que Nossa Senhora tenha a mão na tua cabeça”, dizem. Como para dizer: Vai e volta, estou esperando por ti! Deus, lá em cima, nunca pareceu tão próximo de ti. Lembras-te quando, num momento difícil, me falaste daquela página do Deuteronómio de que tanto gostas: De facto! Qual a grande nação cujos deuses lhes estejam tão próximos como o Senhor nosso Deus, todas as vezes que o invocamos? (Dt. 4,7) Moisés, na primeira leitura de hoje, bateu na rocha e a água jorrou dissipando todas as dúvidas. […] Aqui estamos em guerra. Seremos salvos pelo contacto direto com Deus, não mais o streaming. não é mais suficiente: precisamos de ti, com o teu equipamento de Pontífice e Apaziguador. Certamente não sou eu a sugerir o que fazer: a inspiração é garantida por Deus para ti. Um Deus que, mais de uma vez, confia à débil voz dos sonhos as suas cartas. […] Aos que dizem, Onde está o Papa?! respondes com a Tua presença: Tu és a “ponte” entre o céu e a terra, uma terra que definha − é o mundo evoluído que definha − enquanto Tu, que vieste do sul do Mundo, nos mostras que esta prova está a marcar na nossa carne o que significa a dor dos povos que vêm sofrendo há́ séculos. Esta terra doente deve levantar os seus olhos para os Céus e acreditar que só́ precisa de Deus, e converter-se a Deus! Uma Statio Orbis, Papa Francisco, nada menos que isso. Uma Statio Orbis planetária. Tu, sozinho, na Praça de São Pedro, enquanto o mundo inteiro está deserto e os homens estão todos fechados nas suas casas, com medo do contágio! De serem eles mesmos causa de contágio: contagiosos e vítimas ao mesmo tempo. Levanta a tua voz, a tua oração, a tua intercessão: implora a Deus que venha em nosso auxílio! A provação deste contágio está abrindo os corações, as mentes de muitos para Deus. Tu és o maior homem da Terra: o Vigário de Cristo. Para o mundo, a Igreja inteira, para que o mundo possa elevar a mente e o coração a Deus! Suplico-te, Papa. Apressa-te! Tens o melhor equipamento para apagar este incêndio.»(2)

«Uma Statio Orbis − escreveu o padre Marco uma semana depois − não é uma teologia da fantasia, muito menos uma proposta caprichosa daqueles que, para elevar o nível, propõem o impensável. […] A forma não é a formalidade, é uma antecipação do conteúdo, um prelúdio do que está escondido. É a própria vestimenta do Mistério. Na figura de Pedro, o ápice da palavra convive com o máximo do gesto: a palavra e o gesto. Quando Pedro faz um gesto, o mesmo gesto que eu também poderia fazer, o gesto tem um valor completamente diferente: a figura faz aumentar dez vezes o seu poder. O mesmo se aplica à palavra: o falar humano é, em um instante, (des) humano se pronunciado por Pedro. Portanto, não nos dirigimos a Pedro com palavras que antes não tenham sido rezadas, ajoelhadas, ponderadas, pesadas. Uma teologia de joelhos é a única teologia possível. Porque, então, uma Statio Orbis que desafie todo o planeta? Porque, no meio de uma corrida desenfreada, há a necessidade de parar: “Porque corre se não sabe onde ir?” li na parede de uma estação ferroviária. […] Uma Statio Orbis é uma paragem: lembram-se da antiga estação ferroviária? Imaginem assim: pede-se para o comboio parar por um momento, para parar na estação de São Pedro, para se ligar com Cristo. Não é uma perda de tempo, é ganhar tempo: uma paragem, na flutuação da história, “para fazer um balanço do caminho já feito e renovar as forças na direção de metas futuras da história e do tempo. Nessa paragem o mundo cristão inteiro está simbolicamente envolvido e presente”.(3) Como quando acontece que a Igreja faz uma Statio Orbis diante da Eucaristia: “o mundo para” diante de um pequeno fragmento de Pão, que para os cristãos é Cristo (e Cristo é Deus), porque só n’Ele podemos ser salvos. […] Mais ou menos da mesma forma, imagino um homem, Pedro, pedindo para “parar o mundo” diante de Cristo para que o mundo acredite que somente em Deus somos salvos. O que vos posso dizer? É como pedir a humildade do mundo que faz tanta falta, aquele “eu não preciso de Deus” que se está a tornar a forma moderna de ateísmo.»(4)
Apresentei as palavras do padre Marco na íntegra, porque elas explicam bem o início, a origem, o Espírito com um E maiúsculo, que moveu a ideia que o Papa assumiu. Se este foi o prólogo, o desenvolvimento (filmado pelas câmaras e fotógrafos do Vatican Media) foi concebido pelo mestre das cerimónias pontifícias, Monsenhor Guido Marini.
A direção televisiva foi sóbria, essencial.(5) Seis câmaras para contar o vazio da praça e a oração do Papa. A sua chegada. A sua caminhada à chuva. O crucifixo que parece chorar. As nuvens no céu. Os vislumbres da luz. O Papa a rezar. O som das sirenes a quebrar o silêncio. O mundo inteiro a observar. Os operadores de câmara e os fotógrafos invisíveis. Eis novamente o tema da invisibilidade. Creio que poderíamos falar horas e horas sobre o nascimento da ideia, a direção, a luz, a fotografia, porque foi escolhida a Praça e não a Basílica, porque o Papa fez tudo a pé, da relação entre a Praça vazia e as centenas de milhões de pessoas reunidas em oração, do silêncio e das palavras; mas corremos o risco de perder o sentido do que ocorreu; correndo o risco de pensar que para a Igreja a comunicação tem as mesmas regras do cinema, da televisão, do teatro, dos espetáculos. Mas desta forma – advertiu o Papa Francisco − «acabamos domesticando Cristo». Assim, não se dá mais testemunho do que se faz por Cristo, mas fala-se em nome de uma certa ideia de Cristo. Uma ideia possuída e domesticada pelos que organizam as coisas e se tornam pequenos empresários.(6)

A verdade é que o 27 de março foi um momento misterioso e poderoso do kairos em torno de uma oração simples.
Como Francisco afirmou sobre Pedro e os apóstolos: «O protagonista dos Atos dos Apóstolos não são os apóstolos. O protagonista é o Espírito Santo. Os apóstolos são os primeiros a reconhecê-lo e a atestá-lo. […] A experiência dos apóstolos é como um paradigma que se aplica para sempre. Basta pensar em como as coisas nos Atos dos Apóstolos acontecem gratuitamente, sem forçar. É uma vicissitude, uma história de homens na qual os discípulos chegam sempre em segundo lugar, sempre atrás do Espírito Santo que age. Ele prepara e trabalha os corações. Ele perturba os seus planos. É ele quem os acompanha, os guia e os consola em todas as circunstâncias em que eles se encontram. […] É inútil preocupar-se. Não precisamos de nos organizar, não precisamos de gritar. Não precisamos de nenhum truque ou estratagema. Só precisamos de pedir para poder repetir hoje a experiência que nos faz dizer “nós decidimos, o Espírito Santo e nós” […] Sem o Espírito, querer fazer a missão torna-se outra coisa. […] Os que querem ser protagonistas ou empresários da missão, com todas as suas boas intenções e as suas declarações de intenções, muitas vezes acabam por não atrair ninguém. A missão não é […] um espetáculo organizado para contar quantas pessoas participam graças à nossa propaganda. O Espírito Santo age como quer, quando quer e onde quer.»(7)
A extraordinariedade de 27 de março reside precisamente nisso. A sua capacidade de comunicação nasce da verdade. O Papa estava sozinho, como cada um de nós. Todos sozinhos diante de Deus. Todos unidos diante de Deus. Todos frágeis e nas suas mãos. Numa das homilias de Santa Marta, o Papa Francisco disse que «o Senhor consola sempre na proximidade, com a verdade e na esperança». «Na proximidade, nunca distante: “estou aqui.” Que bonita expressão: “Estou aqui.” “Estou aqui, convosco.” E muitas vezes em silêncio. Mas sabemos que Ele está presente. Ele está sempre presente. A proximidade que é o estilo de Deus, também na Encarnação, significa que está próximo de nós. O Senhor consola na proximidade. E não usa palavras vazias, aliás, prefere o silêncio. A força da proximidade, da presença. Fala pouco, mas está próximo.»(8)
A palavra precisa sempre do silêncio. E o silêncio só é eloquente quando ecoa a palavra. Assim foi em 27 de março. Aquele silêncio, como disse o Papa, perguntava-nos: «Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?» Aquele silêncio era um apelo à fé. Um apelo urgente: «Convertei-vos, convertei-vos a mim de todo o coração» (Jl 2,12)”. Aquele silêncio chamou-nos «a aproveitar este tempo de prova como um tempo de decisão». Naquele silêncio ressoaram as palavras de Francisco: «Não é o tempo do teu juízo, mas do nosso juízo: o tempo de decidir o que conta e o que passa, de separar o que é necessário daquilo que não o é. É o tempo de reajustar a rota da vida rumo a Ti, Senhor, e aos outros.»
Notas
(1) Marco Pozza, «A Sua Immagine», RaiPlay, 15 de março de 2020, https://www.youtube.com/watch?v=v92a4NXWYAw
(2) Marco Pozza, PapaFrancesco, in ginocchio: «Intervieni tu, fai presto!», 15 de março de 2020.
(3) Giovanni Marchesi, Civiltà Cattolica, 2000, q. 3607, p. 173.
(4) Marco Pozza, «Il Papa annuncia la ‘Statio orbis’ per il globo che vorrà», 22 de março de 2020, .
(5) Cf. Dario Edoardo Viganò, «Francesco: scena e drammatica dell’amore», Settimana News, 19-04-2020,.
(6) Papa Francisco, Senza di Lui non possiamo far nulla, LEV, Cidade do Vaticano, 5 de novembro de 2019, pp. 15-16.
(7) Senza di Lui non possiamo fare nulla, pp. 21-30.
(8) Papa Francisco, Homilia na Capela da Casa Santa Marta, 8 de maio de 2020.