Servirmo-nos de uma coisa alheia, tomada às ocultas, em caso de necessidade extrema,
não tem natureza de furto, propriamente falando.
Porque essa necessidade torna nosso
o de que nos apoderamos para o sustento da nossa própria vida. (…)
Em caso de semelhante necessidade também nos podemos apoderar da coisa alheia
para socorrermos ao próximo assim necessitado.
(Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q. 66, a. 7.)

Uma pessoa sem-abrigo em Lisboa: há “uma gritante carência de infraestruturas que permitam condições de vida dignas na cidade.” Foto © Miguel Veiga.
Em meados de março de 2020, no início do primeiro confinamento provocado pela pandemia da covid-19, diversas ondas de solidariedade foram brotando um pouco por todo o país. Em Arroios e outras freguesias de Lisboa, vizinhos e vizinhas juntaram-se para formar, voluntariamente, serviços de apoio mútuo, como cantinas, lojas, mercearias e lavandarias gratuitas. Em maio do mesmo ano, algumas destas pessoas inauguraram, num edifício devoluto, um centro de dia a que chamámos Seara – Centro de Apoio Mútuo de Santa Bárbara.
A experiência de dois meses de contacto com pessoas em situações económicas e sociais fragilizadas – como trabalhadores precários, recém-desempregados, pensionistas, imigrantes e, principalmente, moradores de rua – levou-nos a compreender que existia uma gritante carência de infraestruturas que permitam condições de vida dignas na cidade de Lisboa. Como se faz quarentena sem casa? Como é possível que, depois de ir buscar uma refeição gratuita em take-away, não existam bancos públicos disponíveis onde as pessoas se possam sentar a comer? Porque escasseiam os pontos de água na cidade? Porque fecharam mais de metade dos balneários públicos em plena pandemia?
Perante este cenário, decidimos organizarmo-nos, entre nós e com as pessoas que necessitavam destes apoios, para, em conjunto, inaugurar a Seara e fazer daquele espaço um local de encontro e de partilha. Todos os dias, o centro de dia abria entre as 13h e as 16h, para receber pessoas que traziam as refeições entregues pelas cantinas do bairro, para que pudessem sentar-se a uma mesa a tomar essas refeições condignamente. Para além disto, as pessoas podiam lavar e secar roupa, usar casas de banho, carregar telemóveis ou usar a internet.

“… poder sentar e tomar uma refeição condignamente…” Foto © Miguel Veiga
Inaugurámos ainda uma loja grátis, com roupa e calçado doados, e formámos um pequeno escritório onde colocámos um painel de classificados para procura ativa de trabalho. Os turnos incluíam também atividades diversas: sessões de pintura, de karaoke, cortes de cabelo, entre outras. Num fim-de-semana organizámos pequenos concertos que foram transmitidos por uma rádio amiga. Logo à entrada do espaço, para que todas estas atividades pudessem ser feitas em segurança, eram disponibilizadas máscaras e álcool gel a todas as pessoas. No final de cada turno, toda a gente se juntava para limpar o espaço e deixá-lo pronto para o dia seguinte.
A gestão do espaço e das atividades era pensada e discutida em assembleias semanais em que participavam tanto os vizinhos não carenciados, como as pessoas que usufruíam mais diretamente do espaço. A Seara dispunha de um ginásio suficientemente espaçoso para que todos – cerca de 50 pessoas – estivessem presentes cumprindo as normas de distanciamento físico impostas pela pandemia.
A Seara nasceu num antigo infantário da freguesia de Arroios, fechado em 2018, que na altura foi comprado à IPSS Inválidos do Comércio pela Spark Capital – empresa de serviços imobiliários que promove negócios de investidores estrangeiros com vista à obtenção de vistos gold. No início de junho, a mando da advogada representante destes novos proprietários, seguranças privados irromperam pelo centro de dia e expulsaram todas as pessoas do espaço.
Foi um dia muito violento, com cargas policiais – que apoiaram a ação dos seguranças – e lágrimas geradas não só pelo gás lacrimogéneo, como também pela ansiedade de quem se depara com tamanha injustiça. Mas foi também um dia de uma solidariedade enorme, em que centenas de pessoas se juntaram numa manifestação espontânea em frente do espaço, onde permaneceram, até de madrugada, a exigir o que todos nós queríamos que tivesse acontecido: “Seara fica!”
Dias depois do despejo da Seara, a população sem-abrigo decidiu organizar, pela primeira vez em Portugal, uma manifestação em frente à Assembleia da República: “Somos todos invisíveis” era o mote da convocatória.
O espaço que viu nascer a Seara continua hoje emparedado e nas arcadas da Av. Almirante Reis aumenta, de dia para dia, o número de pessoas em condição de sem-abrigo. As respostas do Estado são ainda claramente insuficientes para enfrentar os problemas sociais e económicos que já existiam antes da pandemia, mas que se agravaram entretanto.

Jesus alimenta a multidão, detalhe de pintura de ir. Eric, de Taizé. Foto © Maria do Carmo Marques Lito.
Alguns de nós continuam a participar em diversas acções bairro, ainda que com menos fôlego. Por exemplo, semanalmente, todas as quartas e domingos, o espaço da Associação Recreativa dos Anjos disponibiliza condições para que quem precise possa confeccionar refeições, para si e para os seus amigos. São dois dias por semana em que se prolonga o espírito de solidariedade da primeira vaga da pandemia.
Catarina Leal é bolseira da FCT e doutoranda em Antropologia. Mais recentemente participou na redação de uma série de artigos para o MAPA, jornal trimestral de informação crítica, numa rubrica intitulada “pandemia solidária”.